Foto: Wilson Dias/ Agência Brasil / Fotos Públicas (01.07.2016) |
“Falta um sistema de
accountability para o judiciário e o Ministério Público”
Defensor de um controle mais rígido do judiciário e de um
sistema remuneratório para o serviço público com regras mais claras, além de um
crítico da atuação de membros do judiciário que estão sob os holofotes nos
últimos tempos, o jurista Eugênio Aragão concedeu entrevista exclusiva à
repórter Juliana Medeiros.
Nomeado Ministro da Justiça durante o governo da presidenta afastada
Dilma Rousseff, o Subprocurador Geral da República Eugênio José Guilherme de
Aragão é conhecido por suas posições polêmicas.
Na entrevista, concedida em seu gabinete na PGR, ele destacou
algumas dessas ideias como a necessidade de desenvolver mecanismos de controle
sobre os excessos do judiciário e da Polícia Federal, inclusive tecendo
comentários críticos acerca da Operação Lava Jato.
Eugênio Aragão formou-se em direito pela Universidade de
Brasília, é mestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela
Universidade de Essex, Inglaterra e doutor em direito pela Ruhr-Universität
Bochum, na Alemanha. Ingressou no Ministério Público Federal em 1987, já tendo
sido cotado para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. Foi o último
Ministro da Justiça nomeado por Dilma Rousseff antes de ser afastada.
Logo no início, ele faz uma análise sobre os rumos que
levaram à crise política que o país vive no momento.
JM: Como é que o senhor
enxerga essa situação?
EA: Olha, a crise que nós estamos vivendo é resultado
sobretudo de uma prática de nossa sociedade, durante muito tempo, uma sociedade
capturada pela mídia, que sofre pela baixa qualidade do seu ensino, da sua
educação e do seu nível de informação. Uma sociedade que tem empurrado os seus
conflitos com a barriga, fingindo às vezes que esses conflitos não existem,
achando-se sempre um povo muito simpático, muito inclusivo, sem discriminação,
outras vezes minorando esses conflitos dizendo que "graças a Deus aqui nós
não temos guerra, aqui nós não temos limpeza étnica". Então o brasileiro
sempre teve um quê – nessas apreciações sobre si mesmo – de desprezo pelos seus
próprios problemas. E são problemas que não são poucos.
Há pouco mais de uma década para cá, houve um governo eleito –
dois governos do presidente Lula e dois da presidente Dilma – que resolveram
desmascarar essa atitude, essa tática de escamotear os nossos conflitos. Botou
em cima da mesa os conflitos, buscou políticas inclusivas, buscou adotar
medidas anticíclicas contra as crises econômicas internacionais que vieram a
rodo, começando em 2008 e que até hoje não se encerraram. E ao mesmo tempo
também trabalhando com transparência. O Portal da Transparência é um resultado
disso, a Lei sobre Acesso a Informação também é um resultado disso. Hoje
qualquer cidadão tem acesso sobre os ganhos de qualquer servidor público no
nível federal e sobre toda a movimentação financeira do Governo Federal, também
sobre os convênios que são celebrados com outras unidades da Federação. E ao
mesmo tempo também deixou que os órgãos do Estado atuassem dentro de sua missão
constitucional, sem querer controlá-los, capturá-los, como sempre foi a prática
nesse país.
O governo deixou o Ministério Público Federal escolher o seu
Procurador Geral; criou a ENCLA – Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e
Lavagem de Ativos – com o objetivo de fazer os órgãos trabalharem mais
eficientemente e coordenadamente nessa pauta e o Governo também fez aprovar, no
Congresso, as leis que tratam da criminalidade organizada e tornou-se parte de
uma série de tratados internacionais que cuidam da matéria. Portanto, ninguém
pode dizer que esses Governos colocaram a sujeira debaixo do tapete. Nós não
empurramos nossos conflitos com a barriga. Essa foi a diferença.
E o resultado está aí. O conflito está latente. Está
claramente em cima da mesa dois modelos de Brasil. Um Brasil inclusivo, que
quer ser integrado no concerto das Nações, que quer ter um papel, sobretudo
trabalhando com a solidariedade aos povos mais necessitados. E um Brasil que quer
o de sempre, que não quer enfrentar seus conflitos, que acha que são conflitos
desprezíveis, que quer ser subordinado aos interesses das grandes potências. É
nesse contexto que estamos vivendo. E isso é a nossa crise de identidade: qual
o Brasil que nós queremos hoje?
É evidente que aqueles que não queriam expor as mazelas do
sistema brasileiro, estão trabalhando eficientemente para voltar ao status quo ante. Isso significa o desreconhecimento de direitos conquistados,
pelos trabalhadores, pelos mais pobres, pelos mais necessitados desse país, mas
também por todos. Há certas coisas que na nossa ordem do dia se tornaram
normais, [por exemplo] a tolerância com a pauta LGBT; a necessidade de se discutir
abertamente os direitos da mulher quanto ao seu corpo, na questão do aborto. O
rechaço a todas as formas de machismo no trato com a mulher.
JM: A violência contra
a juventude das periferias...
EA: A violência com a juventude das periferias, quer dizer,
tudo isso são agendas que estão hoje sofrendo um enorme risco de serem extintas
e me parece que as pessoas não tomaram ainda consciência sobre isso, o risco
que significa se a crise for por esse lado que parece que está indo.
É claro que não se pode dizer que foi o judiciário nem a
mídia que causaram essa crise, quem causou essa crise foi claramente a
insatisfação de setores da nossa sociedade, aqueles mais aquinhoados, com um
modelo de governo que vinha sendo adotado, em que eles tinham uma posição mais
marginal, não comandavam mais a máquina governamental. Eles até eram atendidos
para garantir minimamente a governabilidade.
JM: Em alguns momentos
bastante bem atendidos.
EA: É, em alguns momentos eles levaram umas cascas bem mais
grossas. Por exemplo, é verdade que nos momentos de bem-estar da nossa
economia, os bancos lucraram enormemente no Brasil. O Governo também deu enorme
apoio às Igrejas pentecostais, inclusive com recursos em programas. Igrejas
essas que se politizaram e começaram a trabalhar contra esses direitos
conquistados e hoje estão à frente do golpe que está se formando contra a Presidente
da República.
Então, nós tivemos um governo que pelas circunstâncias em que
no Brasil sempre se fez política, teve que fazer concessões que talvez não
foram muito kosher (limpas), para se
dizer o mínimo, no sentido de garantir maiorias no Congresso. Infelizmente a
dramática da política brasileira é que maiorias só se formam na medida em que
haja um “toma lá, dá cá”. E o governo pagou caro pelo “dá cá”, pagou muito
caro. E a sociedade também.
JM: O que está acontecendo
agora, para o senhor, é um jogo de maiorias?
EA: É um jogo de maiorias que claramente se formou no
Congresso. Essa eleição de 2014 foi muito complicada, muito agressiva, em que a
mídia tradicional exerceu um papel de partido político, mobilizou seus
repórteres e suas reportagens para desconstruir imagens e desconstruir a
sensação de governabilidade. Então nós não podemos dizer que essa crise foi
causada por esse ou por aquele, pelo judiciário nem pela mídia, eles atuaram
concertadamente para dar abrigo à insatisfação desses setores com essa forma de
governança, e sobretudo em relação aos resultados das eleições de 2014.
JM: Alguns elementos
que vazaram recentemente [nos áudios] de Sergio Machado indicam que houve sim
uma participação direta de representantes de grupos midiáticos.
EA: Sim, mas eu não vou chamar isso de causa. Eles são, vamos
dizer, colaboradores. A causa dessa crise é, em primeiro lugar, a insatisfação
dessa elite tradicional brasileira com o resultado de 2014. Eles diziam: “Não vamos
aguentar mais quatro anos, nós já aguentamos doze, ficamos de fora por doze
anos, então agora ou vai ou racha”. Tanto assim é que o desespero no dia
seguinte da vitória de Dilma estava estampado na cara desses políticos. Nenhum
deles aceitou democraticamente o resultado. No dia seguinte quiseram fazer
recontagem de votos, colocaram em xeque o sistema de votação eletrônica, depois
trataram de bombardear a prestação de contas da presidenta. E encontraram
fortes acólitos dentro do próprio poder judiciário para fazer isso.
O atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral – TSE
[Ministro Gilmar Mendes] fez dessa prestação de contas um verdadeiro carnaval. A
prestação de contas foi julgada e por unanimidade aprovada, com ressalvas (algo
que é comum), mas ele simplesmente não largou a rapadura. E continuou com aquilo
debaixo do braço dele como se não houvesse coisa julgada e dando continuidade a
um processo de prestação de contas que já morreu há muito tempo para instruir
lateralmente iniciativas completamente ineptas do Partido da Social Democracia
Brasileira – PSDB contra a presidente Dilma. Porque aquelas ações que foram
colocadas foram escritas de uma forma tão genérica, que ali cabia qualquer
coisa. Então precisava de o Ministro Gilmar Mendes instruir aquela prestação de
contas para, de alguma forma, aclarar o quadro dessas ações malfeitas do PSDB. Então
há ali, vamos dizer, uma atuação conjunta.
JM: E já que o senhor
mencionou o TSE, o senhor acha que existe algum risco de separarem a decisão,
em relação à chapa (Dilma e Temer), no processo? E com essa possibilidade, o
que muda no cenário?
EA: Não existe essa possibilidade. Absolutamente não.
Inclusive o precedente que o Ministro Gilmar Mendes mencionou, de Roraima, é
absolutamente inaplicável, chega a ser má fé a utilização desse precedente. Porque
naquele precedente, simplesmente o cabeça de chapa tinha falecido. Então, por
isso que o vice assumiu, não tem nada a ver com nada. Esse é um precedente
completamente inaplicável. O fato é o seguinte, a legislação é muito clara, a
chapa é uma só, o que se cassa é a chapa. Cassa-se inclusive os votos de todos
aqueles que votaram naquela chapa, os votos são declarados nulos. Não há a
mínima condição. O que existe na jurisprudência do TSE é a possibilidade de a
responsabilidade individual ser diferenciada. Então, por exemplo, um pode levar
[ser condenado] à inelegibilidade por 8 anos e o outro não. Isso é possível. O
que nesse caso concreto não teria nenhuma utilidade porque o vice-presidente
Temer, ora em exercício interino na presidência da república, já está com sua inelegibilidade
decretada e transitada em julgado pelo Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo.
E ele não pode fazer nada a respeito disso. Ou seja, pelos próximos anos ele já
não pode exercer o mandato.
O fato é que não há a mínima condição de separar a pessoa de
Dilma Rousseff e de Michel Temer para cassar o mandato de um e não cassar o
outro. Essa possibilidade não existe, nem legalmente nem jurisprudencialmente. Se
o Ministro Gilmar está querendo fazer nó em pingo d’água, ele não está sendo
honesto com a jurisprudência do TSE. Fora isso (essa situação no TSE), também
foi se fortalecendo aqui [no Brasil] a chamada Operação Lava Jato.
JM: A gente não pode
deixar de comentar, essa Operação que foi deflagrada contra o ex-Ministro do
Planejamento, Paulo Bernardo [já solto] e também a busca e apreensão no
apartamento da Senadora Gleisi Hoffman e uma série de elementos que estão
vinculados a esses fatos, como essa informação de que o juiz que ordenou a
prisão do Paulo Bernardo seria aluno da Janaína Paschoal e ainda considerando a
atuação da Senadora Gleisi que tem sido muito contundente na Comissão
Processante do Impeachment.
EA: Não me estranhou o fato do juiz federal que ordenou essas
medidas contra a Senadora Gleisi e contra o ex-Ministro Paulo Bernardo, não me
estranhou o fato de que ele é orientando de Janaína Paschoal. E isso é fato,
está lá no curriculum lattes dele.
Uma pessoa dessa deveria ter um certo comedimento porque no momento em que ele
manda fazer o jabaculê na Sede do PT,
é claro que ele seria questionado quanto ao interesse político disso. O que
isso tem a ver com o resto? Alguém nesse país fez jabaculê em sede do PMDB? Ou sede de outros partidos envolvidos
também em escândalos? Porque o PT? Ou se fizeram, ninguém saiu noticiando isso.
Imagens enormes com os carrões da Polícia Federal, sem placa, na frente da sede
do PT de São Paulo. É um espetáculo, é a espetacularização dessa investigação.
E isso acaba por minar a sua seriedade. Esse é o problema.
Eu não conheço os autos para dizer se o ex-Ministro [Paulo
Bernardo está envolvido em algo]... eu só acho tudo muito estranho, na medida
em que a gente sabe que a empresa que teria levado vantagem é a mesma empresa
que trabalhou para uma série de outros governos, de outros partidos. E eu tenho
certeza, quem conhece Paulo Bernardo como eu conheço, e quem conhece todo seu
staff no Ministério do Planejamento (que era altamente profissionalizado), não
acredita na viabilidade dessa suspeita. E é nisso que nós talvez tenhamos que
chegar para responder à sua pergunta.
A Operação Lava Jato foi se fortalecendo e se tornando um
elemento de intranquilidade e de imponderabilidade pela completa falta de accountability do judiciário e do
Ministério Público nesse país. É dificílimo você responsabilizar um membro do
MP ou um membro da magistratura por seus malfeitos, por seus exageros, e houve inúmeros
deles dentro da Lava Jato. Abusos em cima de abusos.
Não se pode dizer também que a Lava Jato não teve os seus
méritos, pois teve o mérito realmente de pôr à nu o sistema de desvios de
recursos públicos que irriga a política brasileira. Não é invenção do PT, não é
invenção deste governo, é um sistema que está incrustrado no modo de se fazer
política no Brasil. E isso provavelmente desde Pero Vaz de Caminha que como todo
mundo sabe, ao final de sua carta, pede ao rei que conceda um cargo ao seu
irmão. Então desde Pero Vaz de Caminha existe essa forma do “toma lá, dá cá” e isso
não é novidade. Mas o custo social e o custo econômico dessa forma de se fazer
política foi crescendo enormemente e se tornando quase insustentável. E isso a
Lava Jato colocou a nu. O problema não é isso, o problema é o direcionamento da
atuação. O fato de que pessoas tem relações muito claras com partidos e com
movimentos ideológicos e não disfarçam.
JM: O senhor enxerga,
por exemplo, um quê de ideologia política, na atuação da polícia federal?
EA: Disso eu não tenho dúvidas. É só ver a lista de discussão
da DPF para saber como as pessoas se manifestam lá dentro, contra o governo,
contra Dilma, de uma forma tão virulenta que chega até a assustar. Não é muito
diferente das listas de outras corporações. Há ali uma “petefobia” latente.
JM: Então isso levaria também,
em alguns momentos, a ações que visam à criminalização do PT?
EA: Pelo menos, as pessoas que tem esses pontos de vista,
deveriam exercer um comedimento, ou algum tipo de auto-restrição no exercício
de algumas atribuições, ou seja, se eu não gosto de fulano, eu não vou querer
ser protagonista na investigação de fulano. Existe uma coisa chamada suspeição
e isso não é algo levado a sério. A legislação brasileira sobre suspeição é extremamente
genérica. Fala-se de amizade íntima e de inimizade capital. E na verdade a
gente sabe que as coisas são muito mais complexas do que essa dicotomia. A simpatia
política evidentemente faz as pessoas diversionarem o exercício das suas
funções, da sua jurisdição, das suas atribuições administrativas.
Mas eu não quero apontar fulano nem beltrano. O fato é que
claramente houve um viés de atingir em cheio o governo do PT. Isso houve [esse
viés], ajudado pelos vazamentos e pela imprensa que era sistematicamente
informada pela 13ª Vara do Paraná (Curitiba), sobre as novidades que apareciam.
Dizem que até senha do sistema push [do
judiciário] para acesso direto aos autos, era repassado para repórteres. Então,
isso não são práticas sadias do judiciário.
Quando um Ministro do Supremo se dá ao direito de fazer
comentários desairosos sobre os governantes, que ele talvez tenha que julgar, chamando
por exemplo o presidente Lula de “bêbado” em uma sessão do TSE. Quando
ministros do Supremo se reúnem, antes de dar uma decisão, com os próceres da
oposição, para com eles almoçar. É claro que aquele que está na base do
judiciário se vê autorizado a fazer coisa similar. “Se o Gilmar pode, porque eu
não posso? ” Ele é o exemplo e o exemplo vem de cima, não é isso? Se lá em cima
não se dá o exemplo...
E o pior nisso tudo é que todas as iniciativas de colocar em xeque
esse tipo de conduta são sistematicamente rejeitadas pelos órgãos [de controle]
da justiça. O governo, e o presidente Lula principalmente, não tiveram sucesso
nenhum nas suas arguições quanto aos abusos cometidos. Por exemplo, em relação
ao colega Dr. Anselmo [Henrique Cordeiro Lopes, da Procuradoria Geral da
República] que abriu um procedimento para averiguar as viagens do presidente
Lula, supostamente suportadas pela Odebrecht, depois de ser presidente da república,
já como pessoa privada. Ele abriu esse procedimento na quinta-feira e no sábado
já estava na Revista Época. Quando o presidente Lula foi se queixar disso, nem
o Conselho Superior do Ministério Público acolheu, disse que isso não tinha
nada de irregular (na atuação), e nem o Conselho Nacional (CNMP) que por
unanimidade rejeitou a reclamação do presidente Lula. Então a gente vê que é
falta de accountability. Os órgãos do
Estado hoje estão capturados pelas corporações, que se protegem.
JM: Que medidas seriam
possíveis para evitar esse tipo de coisa? Uma nova reforma do judiciário?
EA: Precisamos de uma reforma do judiciário, do Ministério
Público, para garantir mais responsabilização, mais responsabilidade. As
pessoas têm o direito e tem o dever de promover essas investigações que estão
sendo promovidas, mas isso não pode ser feito fora de um quadro ético muito bem
definido.
Para a gente violar a esfera privada de uma pessoa, do jeito
que está sendo violado, precisa de algo mais do que uma mera suspeita
elaborada. Infelizmente o MP e a Polícia têm trabalhado com esse tipo de
técnica. Quando nós temos um fato complexo a ser investigado, a gente faz um
esforço para elaborar a partir de alguns elementos, que são aparentes, uma
teoria a respeito desse caso. E com isso tenta-se explicar relações e funções
que existem entre os atores e as ações no caso. Elabora-se uma teoria, e então se
fala em núcleo financeiro, núcleo operacional, núcleo político. Mas essas
coisas são meros construtos mentais. Não tem nada a ver, necessariamente, com a
realidade. É aquilo que a gente constrói na nossa mente para nos auxiliar a
entender o que está acontecendo. O que a gente não pode fazer é pegar os fatos
que a gente vai levantando posteriormente e sair socando esses fatos dentro
desses construtos mentais apenas para reforçar aquilo que a gente elaborou a priori,
sem ter a flexibilidade de modificar tudo. Esse é um problema, aliás, de toda a
Força-Tarefa [da Lava Jato]. Porque uma Força-Tarefa é um bicho, uma coisa
muito grande, que é criada com muito “auê” e precisa mostrar resultados.
Ninguém cria uma Força-Tarefa para arquivar processos. Então, a Força-Tarefa
[da Lava Jato] já está sob essa pressão da opinião pública de mostrar coisas.
Porque é uma coisa tão escalafobética, tão grande que precisa ter minimamente
algum resultado. É uma forçação de barra [sobre] coisas que deveriam ser
tratadas com muito mais cuidado. Tem pessoas que jamais se recusaram a colaborar
com as autoridades. Porque estão sendo conduzidas coercitivamente, aos olhos da
população? Tem pessoas que nunca foram chamadas a exibir documentos. Porque se
vai na casa delas e se tira até o computador de suas crianças?
A condução coercitiva só existe como uma medida para
suplantar uma resistência de quem foi chamado a prestar contas e não foi. Por
exemplo, se eu sou convidado a prestar contas e não vou, não colaboro, aí posso
ser conduzido sob vara, “na marra”. Mas uma pessoa que sempre – como foi o caso
do Presidente Lula, por exemplo – que sempre colaborou, sempre que foi chamado
se ofereceu para dar esclarecimentos. Porque uma pessoa dessas é conduzida?
Qual é a razão disso? Eu sei que o Juiz [Moro] elaborou muito bonitinho, na sua
decisão, dizendo que isso é uma medida de cautela geral do processo. Que
imbecilidade, vamos dizer bem claro. O artigo 112 que trata da prisão
preventiva, ele tem pressupostos. Portanto, só cabe nos casos A, B ou C. Já a
condução coercitiva é evidente que ela só existe na opção de o convite, a
intimação, não ter surtido efeito, porque a lei não estabelece quando, de que
modo, com que grau de gravidade se pode fazer uma condução coercitiva quando
não se tem nenhuma suspeita de que, por exemplo, a pessoa queira atrapalhar a
justiça.
JM: Mas ele usou isso.
O Juiz Sérgio Moro, como justificativa, na época da condução do ex-presidente
Lula, disse que tinha agido da mesma maneira com todos os presos da Lava Jato.
EA: Agiu errado! Quem se dispõe a ir voluntariamente prestar
satisfação ao Juiz não deve ser conduzido e muito menos não deve ser mostrado
para o público como se fosse um troféu. Aliás, quando o Supremo estabeleceu a
sua jurisprudência [Súmula Vinculante 11] a respeito do uso de algemas, o que
se quis foi exatamente isso. Esses modos de coação, eles só devem ser
utilizados em último caso e não como regra como diz o Senhor Moro.
JM: No entanto, existe
um argumento de que [dizem eles], e claro que guardadas as devidas proporções como
a questão da tortura, mas que se exerce aí uma espécie de pressão psicológica
para que essas pessoas sejam forçadas a falarem.
EA: Você só pode exercer a pressão que é legalmente prevista.
O artigo 1º da Convenção da ONU contra a tortura [e outro tratamentos ou penas
cruéis, desumanos ou degradantes, adotada pela Resolução 39/46, em 10 de
dezembro de 1984], exclui da definição de tortura o sofrimento decorrente das
sanções legalmente previstas. E não é previsto legalmente que você use dos poderes
de admoestação da justiça para forçar alguém a falar. Isso não existe. Então,
sim, se não é tortura por conta talvez do grau de sofrimento, é no mínimo um
tratamento desumano, degradante. Que é tão condenável quanto. Para mim alguns
casos chegam a ser tortura, porque é prender uma pessoa e mantê-la presa para
que ela comece a “cantar”. E claro, depois que começa a “cantar”, aí
rapidamente se concede uma liberdade provisória. Mas sabendo que essa pessoa
está tendo sua reputação destruída e que sua família está sofrendo com isso,
isso é tortura. É uma pressão emocional, psicológica, que vai muito além do que
muita gente consegue suportar. Agora, a gente acha que isso é normal. O Supremo
que vedou o uso de algemas, esse mesmo Supremo não tem problema nenhum com isso
[tortura], aparentemente. Porque um é polícia e o outro é juiz? Ou é o
corporativismo da magistratura?
Eu acho que a gente tem que começar a botar as coisas no
devido lugar. Ninguém está dizendo que a gente deve colocar a sujeira debaixo
do tapete, e eu disse isso desde o início. Este governo e os governos que o
antecederam, do presidente Lula e da própria presidenta Dilma, em momento algum
botaram a sujeira debaixo do tapete, nunca agiram para este fim. Agora as
investigações têm que ser feitas dentro de um quadro ético para a gente
garantir os direitos fundamentais e sobretudo para que amanhã – e a história
vai contar isso – essas investigações não sejam desmoralizadas.
O grande erro do Golpe de 64, do ponto de vista da
redemocratização – claro que o golpe em si já foi uma violência enorme – mas o
grande absurdo, foi ter colocado no mesmo saco dos que foram cassados pelo
AI-5, corruptos e políticos sérios que contestavam o regime. Quando veio a Lei
de Anistia, todo mundo foi anistiado e os corruptos foram anistiados junto com os
outros e muitos desses corruptos da época vieram a ocupar cargos até de
governador de Estado, usando no seu currículo “fui cassado pela Ditadura
Militar”. Alguns foram cassados porque realmente foram heróis, outros porque
foram uns “malas”. Claro que a forma de os tratar não seria cassá-los pelo AI-5
e sim submetê-los a um processo que os destituísse do cargo. Mas a ditadura
pegou um atalho e juntou todo mundo. Da mesma forma que no Rio de Janeiro
pegaram os presos políticos e juntaram com os presos comuns e no que deu? Deu
Comando Vermelho, não é isso? A organização montada a partir de um partido de
resistência à ditadura, esse know-how
que foi passado para a criminalidade comum. Por isso que amanhã nós vamos ver
todos esses processos desmoralizados pela história, porque se misturam coisas.
JM: O senhor então acredita
que a Operação Lava Jato será desmoralizada?
EA: Eu tenho certeza, assim como o Mensalão também. São histórias
que vão ser reescritas. No momento em que a gente se distancia dos fatos, a
gente tem mais condições de entendê-los, com mais tranquilidade, mais frieza. E
nessa hora, a história vai ser cruel com aqueles que fizeram o que estão
fazendo.
JM: Quais seriam então
os limites do Estado para o combate à corrupção? Que mecanismos são possíveis,
para não deixar de atender a esse problema que é histórico, que é uma corrupção
endêmica?
EA: Olha, essa é uma coisa que eu já venho falando sobre isso
há pelo menos quatro anos, quando eu escrevi um artigo a respeito. O Brasil
quando saiu da ditadura e entrou na democracia, preservou certas instituições e
criou alguns quistos dentro da estrutura do Estado. Carreiras que se sentiam
ameaçadas nas suas vantagens, nos privilégios que gozavam na ditadura militar,
principalmente aquelas carreiras que dizem respeito ao uso do monopólio de
violência do Estado. Se organizaram para vender a imagem de que eles eram os verdadeiros
guardiões da democracia. Nasceram assim as corporações que vedem a sua imagem.
E eu não excluo o Ministério Público disso porque o trabalho do MP durante a
Ditadura Militar foi tudo, menos heroico. Era um órgão de repressão e que
passou a lidar com temas com mais apelo popular, somente a partir de 1985
quando saiu a Lei da Ação Civil Pública [Lei
n. 7.347/85]. Mas o MP
era um órgão que fazia parte do esquema de repressão.
JM: Assim como a
Polícia Militar.
EA: Assim como a Polícia, assim como a própria Advocacia
Pública que era do Ministério Público. Então, essas carreiras souberam se
valorizar. O MP foi o que mais soube se valorizar, mas a magistratura também
soube fazê-lo. Ou seja, não se mudou absolutamente nada nas suas concepções, na
sua doutrina, apenas se deu novas atribuições para eles as exercerem, aparentemente,
dentro da defesa da democracia e do Estado de Direito. Só que os personagens
são os mesmos, os mecanismos de raciocínio são os mesmos a Weltanschauung (cosmovisão) é a mesma. Isso não muda. O cachimbo
entorta a boca das pessoas.
Então o que acontece é que essas corporações que souberam se
valorizar também conseguiram, na Constituinte, uma série de prerrogativas e
vantagens que também as colocaram sob a possibilidade de um uso maciço do poder
do Estado para constranger até o próprio poder público. Essas corporações, para
se valorizarem, tem que mostrar sua presença no Estado. E isso elas fazem
através da espetacularização, através da demonstração do seu poder e da admoestação
dos governos da vez. Não é à toa que essas corporações conseguiram os maiores
ganhos na República. Quem ganha mais nessa República? Ministério Público, em
primeiro lugar, e magistratura. Polícia (no Executivo), Advocacia Geral da União,
Auditores Fiscais.
JM: E Tribunais de
Contas.
EA: Os Tribunais de Contas, e também os consultores do
Senado, mas aí é outra questão [os “supersalários”], porque é um problema
endêmico no Congresso Nacional. Mas todos esses daí exercem funções que se
traduzem em risco para o Estado e para a governança e eles usam esse risco para
se valorizar. Um professor universitário, por exemplo, ou um diplomata não tem
esse poder de fogo. Até um militar não tem esse poder de fogo porque um militar
é subordinado. Ele tem uma rígida hierarquia, um militar não pode criar riscos.
Agora esses órgãos estão muitas vezes, como dizem os ingleses, running amok [expressão originada do
malaio para definir uma corrida desabalada em fúria]. E o que está por trás
disso? Uma disfunção no sistema remuneratório da República. Hoje não existe
sistema. O governo quando trata da remuneração dos seus agentes, tem que
negociar com quatrocentas e tantas categorias. É claro que umas cinquenta podem
sair satisfeitas e trezentos e cinquenta vão sair furiosas porque não vão
ganhar aquilo que eles pensam que devem ganhar.
JM: E aí vão barganhar.
EA: E aí vão barganhar. Esse é um problema permanente, porque
nós não temos um sistema remuneratório lógico que distribua os recursos em cima
de coordenadas claras, vetores de risco e de complexidade. Um Diplomata, ou um
Embaixador, deveria ganhar a mesma coisa que um Subprocurador Geral da República,
que é mais ou menos o que deve ganhar um professor titular da carreira
universitária. Você tem que ter alguma coisa que faça sentido! Eu costumo dizer
isso: “tire da bandeira nacional o ‘Ordem e Progresso’ e coloque em seu lugar
‘Quem não chora, não mama’. Porque é isso, quem grita mais é quem recebe mais.
Então isso está na base dessa desfuncionalidade do uso da força por certas
corporações e para controlar isso, a primeira coisa que temos que fazer é acabar
com a possibilidade de haver “príncipes” na República. Nós precisamos realmente
tratar todas as carreiras do serviço público de uma forma inclusiva. De forma que
o governo na hora em que ele tenha que negociar ganhos, ele vai negociar com
uma categoria, [por exemplo] o “sindicato dos servidores públicos federais”. E
não com quatrocentas associaçõeszinhas que ficam disputando entre si atribuições
e prerrogativas. A briga que existe hoje entre a Polícia Federal e o Ministério
Público, é uma briga por condições de representar riscos. Cada um quer ser mais
poderoso do que o outro para se beneficiar disso. É claro, tudo faz parte de um
mesmo raciocínio. Não significa que o fulaninho exerce suas funções como, vamos
dizer, uma “meretriz” buscando com isso se valorizar, não é isso. Existe muita
gente séria que vai atrás das suas obrigações como um cidadão honesto. A grande
maioria é assim, mas o sistema não favorece. O sistema favorece operações
espetaculosas.
JM: Mas isso teria uma dificuldade,
não dá para federalizar uma regra como essa.
EA: É, para isso tem que mexer na Constituição, não tem outro
jeito. Mas existem alguns passos que poderiam ser feitos aos poucos, como a
negociação entre os chefes de poder, para integrar o sistema de gestão de
servidores. Por exemplo, o SIGEPE (antigo SIAPE), deveria incorporar o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário. De forma que a gente tenha um sistema
de folha de pagamento único. E isso dá para fazer.
JM: E servir de modelo
para os Estados?
EA: E servir de modelo para os Estados ou talvez a gente crie
até um sistema nacional de gestão de pessoal. Porque e se hoje você me perguntar
quanto o Brasil gasta em gestão de pessoal? O Brasil, eu estou falando, em
todos os três níveis [Executivo, Legislativo e Judiciário]. Esse dado não existe.
E as vezes nem o Executivo sabe ao certo o que o MP está gastando, o que a
Justiça está gastando, ou o que o Legislativo está gastando porque os sistemas
não conversam entre si.
JM: Mas não deixa de
ser uma proposta complexa, porque cai na questão da arrecadação (que é
diferente de um estado para outro) e suas economias internas, que também são
diferentes.
EA: Isso é, mas eu estou falando aqui somente de uma coisa:
reduzir o risco da atuação dos agentes do Estado. E isso se faz através de um
controle mais claro dos seus ganhos. Não faz sentido um novato no MP ganhar
líquido quase R$ 24 mil, muito mais do que um governador de Estado. É claro que
ele olha para o governador, no estado em que está lotado, de cima para baixo.
Vai dar carteirada. Esse é o grande risco de a gente não ter um sistema por
trás para a gestão de pessoal. Eu acho que a coisa começa por aí, mas claro, no
momento em que todo mundo vira servidor público, [tem que usar] crachá. Mas
aqui nessa casa [PGR], por exemplo, os servidores usam crachá, mas os membros
[do Ministério Público] não. Os membros são “príncipes”, eles não usam crachá.
E a questão é de segurança, muitas vezes. Será que o porteiro lá embaixo sabe
que eu sou membro do MP? Eu talvez sim, porque já estou aqui há 30 anos. Mas
outros, talvez, ele não saiba. Mas é uma coisa que “Deus me livre Procurador
tendo que usar crachá”. E a gente vê como aí já existe uma elitização do
serviço público.
Eu costumo dizer que o Lula errou em permitir que o
Procurador Geral da República fosse escolhido pela corporação.
JM: Não foi um avanço?
EA: Não, não foi um avanço. Do ponto de vista político, qual
é a legitimidade de os procuradores fazerem o Procurador Geral da República? O que
eles representam em termos de legitimidade política? Nada. Nós não temos
legitimidade política, nós não somos eleitos. Nós temos uma legitimidade
burocrática. E qual é o critério dessa legitimidade burocrática? É a qualidade
do nosso trabalho. Se a gente trabalha direito, dentro dos parâmetros legais,
nós nos legitimamos pela qualidade do nosso trabalho. Mas não pelo voto
popular.
O Procurador Geral da República é um agente político
fundamental para o Estado porque ele pode derrubar o Presidente da República. Então,
porque eu, procuradorzinho da república tenho o direito de votar nele? Qual é o
sentido disso? Dessa legitimação? Não tem nenhuma. A Constituição foi muito sábia
em dizer que o Presidente da República escolhe e submete ao Senado. Agora, o
Senado tem que fazer o serviço direito. Não é fazer perguntas capciosas para
deixar o sujeito mal. É realmente fazer um escaneamento da sua vida que não pode
ser feito em nenhum tipo de sabatina. Nos EUA, por exemplo, se submete o
candidato a uma banca de professores universitários para saber se ele tem
“notório saber” mesmo. Há professores universitários que farão pareceres sobre
ele. Então é uma questão de qualidade, não é mero gesto político de jogar “confetes”
em cima do candidato que você gosta para PGR e mandar “flechas” para aquele que
você não gosta, que é mais ou menos o que acontece na sabatina aqui no Brasil
hoje em dia. Mas não há uma avaliação correta disso [do candidato], então quem
não faz o dever de casa é o legislativo porque o sistema é correto. Quem
representa a soberania popular, é o legislativo e o presidente da república que
foram eleitos. Então é essa soberania popular que escolhe o Procurador Geral da
República. Não podemos esquecer que “todo poder emana do povo e em seu nome é
exercido”, está lá na Constituição.
JM: Em alguns países
existe eleição direta para esses casos.
EA: Sim, uma coisa é eleição direta, no Brasil não é assim, é
concurso público. Eu sou concursado e concurso público não me atribui
legitimidade política nenhuma. Eu não legitimo o Procurador Geral da República
através do meu voto como burocrata. Eu entendo que na verdade você entregar a
escolha do PGR para uma corporação é o sequestro da soberania popular por essa corporação.
Isso é muito sério.
Na verdade, o Presidente Lula (ele veio do sindicalismo), entendeu
que a Associação dos Procuradores era um “sindicatão” do serviço público, mas
não é. E sabe qual é a grande diferença de um sindicato na iniciativa privada e
no serviço público? É que na iniciativa privada existe uma coisa chamada mais valia (exploração do homem pelo
homem), ou seja, a exploração da mão-de-obra pelo capital. É só abrir o velho
Karl Marx que está escrito lá. Mas isso também existe no serviço público. Não
existe essa exploração por parte daquele que dá o emprego, o erário público. Eu
não sou um explorado. Mas existe a exploração da mão-de-obra sim. Aquele senhor
do cafezinho que entrou aqui (ou o ascensorista), ganha quarenta vezes menos do
que eu e isso não se justifica. Esse é um explorado porque a mão-de-obra dele está
aviltada. Já eu sou um príncipe da República, eu não sou um explorado, eu posso
usar meus poderes para me valorizar. Eu tenho essa capacidade. Ele não tem,
nenhuma. Então tem sim uma situação de desigualdade. Tratar Procurador da República
como se fosse um explorado que merece ser empoderado como se fosse um sindicato
participando do conselho de administração de uma empresa, pelo amor de Deus,
uma coisa não tem nada a ver com a outra. Então a Associação Nacional dos
Procuradores da República não tem nenhuma legitimidade para fazer o PGR. É um
erro. E sabe o que acontece? Na hora em que o PGR senta naquela cadeira, a quem
ele deve maior lealdade? À corporação que colocou ele lá. E as corporações são
tudo menos razoáveis. Elas querem sempre se valorizar. Então a visão acabará
sendo sempre a visão de fortalecimento da corporação.
JM: Nesse caso, eu não
posso deixar de perguntar se o senhor tem outros colegas que tem esse mesmo
entendimento.
EA: Eu sou bastante polêmico sobre isso, aqui dentro do MPF
eu sou bastante polêmico, mas eu digo isso abertamente, tenho artigo escrito
sobre isso. Eu sei que no Brasil hoje nós temos vários procuradores que colocam
todo esse sistema em xeque. Principalmente depois de terem visto o impacto
desse fetichismo penal sobre a democracia. Há uma sobrevalorização do direito
penal dentro do nosso sistema político, como se o direito penal fosse capaz de
fazer milagres como transformar um Estado, com um sistema político corrupto,
numa Suécia. Claro que não. O Direito Penal não foi feito para isso, nunca foi.
O Direito Penal foi feito para colocar batedor de carteira na cadeia, não foi
feito para endireitar o sistema político. Claro que a gente não vai deixar
aqueles gatunos que se apropriaram da coisa pública andando pela rua. Não se
trata disso. Algum tipo de coerção deve ser demonstrado pelo Estado, até para
dizer para a população o que é certo e o que não é. A sociedade tem que de
alguma forma trabalhar em cima desses símbolos. Ninguém está dizendo que isso é
errado. A função do Direito Penal é punir. Mas punir por si mesmo não endireita
o sistema político. Mal endireita um indivíduo, muito menos um sistema
político. Então isso é uma falsa crença e essa falsa crença está começando a
ficar muito óbvia para muitos colegas. Não se chegou a esse ponto, de se começar
a questionar o valor da corporação porque isso implica também de você ter que
cortar na sua própria carne. Ninguém considera que está ganhando pouco, todo
mundo acha que o dinheiro é pouco e não que está ganhando pouco, porque você
vai se acostumando com o nível de gastos conforme aquilo que você ganha.
Eu estou muito tranquilo em relação a isso porque sempre
tenho vivido de uma forma muito comedida. Não compro carro novo, a não ser
quando preciso porque o outro se esbagaçou. O meu carro dura nove, dez anos tranquilamente.
Não tenho nenhum tipo de vaidade em vestir ternos caros. Terno tem que ser
correto, você tem que se apresentar corretamente nos lugares onde você
trabalha, faz parte do seu métier, é sua imagem. Mas isso não
significa que eu tenho que comprar um [terno da grife italiana] Giorgio Armani.
E viajar para a Europa é às vezes, quando dá, quando é possível. E quando não
é, não é. Tem coisas que você tem que saber viver com isso. Mas as pessoas vão
se acostumando com um alto nível de gastos e aí as coisas ficam complicadas.
JM: Algumas associações
de advogados fazem uma crítica de que, apesar da sociedade estar aplaudindo
essas movimentações da Operação Lava Jato, para esses advogados que atuam de
maneira autônoma com seus clientes no dia-a-dia, essas conduções, esses
excessos, eles vão se tornar uma espécie de regra, os outros juízes (de primeira
instância) também vão começar a repetir essas práticas.
EA: Sim, é a chamada “Teoria do Homem da Rua”, se um grandalhão
faz porque o pequenininho não vai fazer?
JM: E ao mesmo tempo
não existe um real mecanismo de controle da Corte Suprema, também por seus
excessos.
EA: É a falta de accountability.
JM: Quer dizer, para
além da questão da remuneração que o senhor estava falando, teria que haver também
outras ferramentas para se medir essa atuação dos Ministros.
EA: É aquilo que eu digo, não faz sentido a Corte Suprema
também não estar submetida a um CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Depois que
a gente vê o que certos Ministros falam por aí, como é que você responsabiliza
um Ministro que fala antes de julgar? Se um Desembargador não pode fazer isso,
nem um juiz de primeiro grau, porque um Ministro do Supremo pode? Quem vai
responsabilizar um Ministro do Supremo? Porque os Ministros do Supremo acham que
eles são a Constituição, mas não, os guardiões da Constituição somos todos nós.
É a sociedade que, tendo amor pela democracia, melhor garante [a Constituição],
não é o Supremo Tribunal Federal. Na medida em que você tem carinho por esse sistema,
dá valor a esse sistema, você [lembra que] conquistou essa democracia a duras
penas, você vai querer prezá-la com unhas e dentes. Não o Supremo Tribunal
Federal. Eles [os Ministros] são intérpretes da Constituição e devem fazer isso
com absoluta lealdade porque “todo poder emana do povo e em seu nome é exercido”.
Eu tenho só uma preocupação em certas críticas à Lava Jato
porque muitas são feitas de forma interesseira. Pessoas que são pegas com a mão
na botija e querem politizar o seu problema. É aquela situação de 64. O corrupto
que entrou na mesma panela que o opositor político. Esse é o problema na hora
de ver as críticas que são feitas à Lava Jato, você separar o joio do trigo.
Tem críticas que são interesseiras. Por exemplo, eu não acho que é séria uma crítica
à Lava Jato que é feita para justificar o golpe. São pessoas que estão querendo
escapulir. Agora, não deve haver direcionamento, não deve haver
espetacularização. Quanto mais envergonhada a justiça, quanto mais modesta,
melhor ela é.
JM: O Presidente
afastado da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, está sendo tratado de maneira
diferente pelo judiciário?
EA: Veja bem, o que passa talvez às vezes é isso, mas só por
um motivo: a situação dele é diferente. Justiça é “tratar de modo diferente os
que são diferentes e de modo igual os que são iguais”. É claro que ele tem uma
posição na República em que os malfeitos dele chamam a atenção de todos. Então
é claro que ele não pode imaginar que um escândalo no nível dele, com contas na
Suíça, para suportar gastos nababescos da família, que isso vai passar ao largo
do que a população acha que é razoável. Não é o caso da presidente Dilma, não é
o caso de Lula. Não tem gastos nababescos. Então são situações muito diferentes.
JM: Finalmente, em
relação à presidenta afastada, eu gostaria que o senhor fizesse uma avaliação
dessa fase agora, da Comissão Processante no Senado e a perspectiva que o
senhor tem agora, tanto em relação ao judiciário, quanto em relação ao processo
político.
EA: Eu vou dizer assim, nós não temos razão nenhuma para
sermos otimistas. Dentro do sistema que nós estamos vendo, todo ele funcionando
como um rolo compressor, as corporações andando de mãos dadas com a falta de accountability do judiciário, com esse
descontrole às vezes proposital, não é razão para a gente ter tranquilidade.
Mas eu acho só o seguinte, está muito claro o grau de
injustiça que está sendo cometido com Dilma ao se qualificá-la como uma pessoa
que praticou crime de responsabilidade. As pessoas que tem consciência, não
precisam gostar de Dilma, mas que tem um mínimo de consciência e carinho por
essa democracia, devem pensar com mais cuidado. Isso não é uma questão simples,
de uma maioria que se formou para derrubar a presidente da republica. Não, isso
é estigmatizar uma pessoa por algo que ela não fez. Isso é injusto. E isso também,
do ponto de vista da democracia não a valoriza. Porque é uma pessoa que foi
eleita com 54 milhões de votos e deve ficar até o final do mandato já que
nenhum crime praticou. Em 2018 haverá outra chance. E é assim que se deve fazer
política. A democracia é cíclica.
Com certeza há um desgaste natural desse perfil de governo
(do PT) pelo fato de que vai ficar 16 anos no poder numa democracia, que se
preza pela troca periódica de governos. É muito tempo. Então é normal que em
qualquer democracia, depois de 16 anos, haja mudanças. Mas tem que ser feito
dentro de um processo de normalidade. E não se buscando um atalho, de acusar
uma presidenta que tem absoluta lisura no seu comportamento, de algo que ela
não fez, para se livrar dela e colocar no seu lugar, pessoas que, cá para nós,
não necessariamente tem a melhor reputação.
* Juliana Medeiros é
editora de jornalismo político e internacional na Rádio Cultura FM de Brasília, repórter do Jornal Brasil Popular e
colaboradora do Jornalistas Livres.