"Se não estás prevenido ante os meios de comunicação, te farão amar o opressor e odiar o oprimido" Malcom X

quinta-feira, 19 de abril de 2012

21 de abril: ou param a roubalheira ou paramos o Brasil

terça-feira, 10 de abril de 2012

Chega de torturar mulheres

Côrte do STF em julgamento / Foto: Nelson Jr (SCO/STF)

O que o STF decidirá, ao julgar a permissão do aborto de anencéfalos, é se o Brasil respeita os direitos humanos – ou prefere seguir infligindo dor a mulheres que tiveram a infelicidade de gerar um feto incompatível com a vida



Depois de quase oito anos, o Supremo Tribunal Federal deverá votar nesta quarta-feira (11) uma ação que decidirá se as mulheres grávidas de um feto anencéfalo (malformação incompatível com a vida) poderão interromper a gestação sem necessidade de autorização judicial. Hoje, elas são obrigadas a peregrinar pela Justiça, em geral por meses. Em alguns casos, o juiz dá autorização, em outros não, numa zona ambígua que depende das crenças pessoais de quem julga. Às vezes, quando o juiz dá a licença, já demorou tanto tempo, ocorreram tantas idas e vindas no processo, que o bebê nasceu e morreu. Em parte porque, ao descobrir que uma mulher pediu a interrupção da gestação anencefálica, grupos religiosos usam a estratégia de atrasar o processo com recursos como, por exemplo, um “habeas-corpus para o feto”. A ação, que já é lenta, tarda ainda mais, até que não exista mais o que julgar. Na prática, como todos sabemos (com exceção dos hipócritas, talvez), as mulheres de classe média resolvem a questão buscando clínicas clandestinas de aborto, para não ter de se submeter à demora e às dificuldades de um processo judicial no Brasil. Quem procura a Justiça são as mulheres pobres, que dependem da rede pública de saúde para interromper uma gravidez. Nesta quarta-feira, o STF terá a chance de estancar – com atraso – uma violação sistemática dos direitos humanos causada por um vácuo na lei, que além de desamparar as brasileiras mais frágeis em um momento dificílimo da vida, as condena à tortura.
Divido essa coluna em duas partes. Na primeira, faço algumas considerações gerais sobre a questão que será julgada pelo Supremo a partir do meu olhar sobre ela. Na segunda, conto a história de uma mulher particular, Severina, porque aprendi que só compreendemos a vida – na vida. Em 20 de outubro de 2004, o Supremo derrubou uma liminar que permitia interromper a gestação de anencéfalo sem autorização judicial. Um dos ministros disse, ao votar: “Mas quem são essas mulheres? A gente nem sabe se elas existem”. As mulheres severinas existem. E, como veremos, são, sim, torturadas.
A pergunta que o Supremo responderá nesta quarta-feira é a seguinte: “Uma mulher, grávida de um feto anencéfalo, pode interromper a gestação sem necessidade de autorização judicial?”. Espero que a resposta da corte seja afirmativa. Acompanho o percurso dessas mulheres há quase dez anos e me parece claro que este é um debate de direitos humanos. Impedir uma mulher de interromper a gestação de um feto incompatível com a vida, se ela assim o desejar, é condená-la à tortura. Assim como também seria tortura obrigar uma mulher a interromper essa mesma gestação se ela desejar levá-la até o fim porque, por crença religiosa ou qualquer outro motivo, encontra sentido nesse sofrimento.
Este é o ponto: se o feto é incompatível com a vida, só quem pode decidir pela interrupção ou não da gestação é quem o carrega no ventre. Ninguém mais – nem as feministas, nem os padres, nem eu ou você. Em geral, olhar pelo avesso nos ajuda a enxergar o quadro com maior clareza. Imagine se a lei brasileira determinasse o oposto. Ou seja: pela lei, todas as mulheres grávidas de fetos anencéfalos fossem obrigadas pelo Estado a interromper a gestação assim que o diagnóstico tivesse sido comprovado. Se não quisessem, precisariam entrar na Justiça para impedir o aborto compulsório. Neste caso, a violação de direitos humanos seria a mesma. E eu estaria aqui, defendendo o direito dessas mulheres de levar a gestação até o fim com a mesma veemência.
Ninguém deveria poder decidir por uma mulher como ela vai lidar com a gestação, dentro do seu corpo, de um feto que não poderá viver. Só ela sabe da sua dor – e de que escolha será mais coerente com aquilo que ela é – e acredita. As estatísticas mostram que 100% dos anencéfalos morrem: cerca da metade ainda na gestação, a outra metade após o parto. O que acontece hoje – e é essa desigualdade de direitos que o Supremo vai anular ou cristalizar nesta quarta-feira – é que as mulheres que encontram sentido em levar essa gestação até o fim têm seu direito respeitado. E aquelas para quem é insuportável conviver, dia após dia, gerando a morte em vez da vida, são torturadas.
Nunca cometi a indignidade de julgar uma mulher que decide levar uma gestação de anencéfalo até o fim. O sentido só pertence a ela – e aqueles que a julgarem extrapolam limites de humanidade. Do mesmo modo, lamento aqueles que se apressam a condenar as mulheres para quem a gestação se tornou intolerável. Na tentativa de impor suas crenças para todos, com a soberba de quem acredita deter o patrimônio do bem, cometem barbáries contra pessoas já fragilizadas pela imensa dor que é gerar um filho condenado à morte por uma malformação. 
A dor e o luto pelo filho desejado e perdido são inevitáveis, como qualquer mulher ou homem que já testemunhou essa tragédia de perto – ou mesmo de longe – sabe. O outro sofrimento, o de continuar a gerar um filho para enterrá-lo, porque não lhe permitem interromper essa gestação sem futuro, não. Esse martírio pode ser evitado.
De tempos em tempos, grupos contrários à permissão do aborto no caso de anencefalia exibem uma mulher que decidiu levar a gravidez até o fim como uma espécie de heroína – como se ela fosse uma mãe melhor do que aquela que escolheu interromper a gestação. É uma mentira. Não há heroínas nessa história, apenas mulheres que sofrem. Qualquer oposição entre a mulher que optou por interromper a gestação e aquela que preferiu mantê-la é falsa. Ambas são mulheres que, diante da mesma tragédia, fizeram escolhas diferentes. E ambas devem ser respeitadas na sua decisão, seja ela qual for. O que discutimos aqui é por que uma escolha é reconhecida pelo Estado – e a outra não é.
Há algo importante para compreender nessa tragédia, que talvez parte das pessoas deixe de perceber por não ter convivido com ela. A mulher que se descobre grávida de um feto anencéfalo desejou aquele filho. Em geral, ela o planejou. Quando soube que estava grávida, ela comemorou. E então, num exame com 100% de confiabilidade, ela descobriu que seu filho era anencéfalo. Ou seja, uma malformação letal determinou a impossibilidade de seu filho viver.
Não se trata, portanto, de uma criança deficiente, como alguns definem, torturando também as palavras. Trata-se, como disse o ministro Ayres Britto, em 2004: “O que se tem no ventre materno é algo, mas algo que jamais será alguém”. Impor a essa mulher, submersa em desespero, a acusação de “assassina de crianças”, como alguns o fazem, “em nome da vida”, é cruel. Apenas isso: cruel.
Espero que, depois de quarta-feira, não caiba mais a nenhum de nós opinar sobre a escolha de uma mulher numa situação dolorosa como essa. Aquelas que decidirem levar a gestação até o fim continuarão sendo acolhidas em sua decisão – e aquelas que quiserem interrompê-la também serão amparadas pelo Estado. Ponto.
Agora, Severina, que nos conta com o seu viver o que é a vida em tragédia. Em 20 de outubro de 2004, no mesmo momento em que o Supremo derrubava a liminar que permitia o aborto de anencéfalo sem autorização judicial e um dos ministros perguntava se essas mulheres existiam, Severina Maria Leôncio Ferreira internava-se em um hospital do Recife para interromper a gestação. O médico decidiu deixar o procedimento para o dia seguinte – e no dia seguinte foi tarde demais. Severina teve de deixar o hospital carregando sua dor e sua barriga. Era o seu segundo filho. E ele não viveria.
Severina e seu marido Rosivaldo plantavam brócolis em Chã Grande, um pequeno município nas proximidades do Recife. Mesmo pobres e analfabetos, eles decidiram procurar a Justiça em busca de autorização para interromper a gravidez. Aqui talvez valha uma pausa para se enfiar na pele de Severina e imaginar o que é para uma mulher analfabeta, vinda da zona rural, sem dinheiro, buscar a Justiça no Brasil – e isso tudo em um momento em que se sentia despedaçada. Severina só teve a coragem de enfrentar essa enormidade porque continuar aquela gestação para a morte seria um martírio ainda maior.
Acompanhei Severina para contar o longo dia seguinte a que os ministros do Supremo não assistiriam. O documentário Uma História Severina (Imagens Livres), dirigido por mim e pela antropóloga Debora Diniz, mostra que as mulheres severinas existem – e precisam que o Estado reconheça sua existência, sua dor e seus direitos. A longa travessia de Severina é contada em apenas 23 minutos. Quem quiser pode assistir ao documentário na internet, basta clicar aqui. Em 2005, O filme foi enviado a todos os ministros do Supremo.
Não vou repetir o que está contado pelo registro da vida em curso de Severina. Cada um pode ver por si mesmo. Quero contar apenas sobre algumas pequenas delicadezas e grandes brutalidades da trajetória de Severina que podem complementar as imagens – e nos ajudar a compreender o que significa para uma mulher ser condenada a continuar gerando um filho para a morte. Nas últimas semanas do martírio de Severina, eu tirei férias da ÉPOCA, onde trabalhava como repórter especial, e passei a acompanhá-la. Só a deixei depois do enterro do bebê, que nasceu morto.
Se a liminar não tivesse sido derrubada, Severina faria o aborto no quarto mês de gestação. Como foi obrigada a entrar na Justiça, seu sofrimento foi prolongado até o sétimo mês, quando finalmente conseguiu a autorização. Tenho convicção de que Severina não deveria ter vivido o que viveu nesses três meses. Ao testemunhar seu sofrimento, ficou muito claro para mim que aquilo era, sim, um tipo de tortura – uma tortura imposta pelo Estado.
Até o exame revelar que seu filho era anencéfalo, Severina fazia o pré-natal na companhia de outras grávidas da zona rural, numa alegre romaria de mães tecendo roupinhas e planos. Severina queria muito um segundo filho – e Rosivaldo, seu marido, sonhava com uma menina. De repente, os caminhos dessas mulheres bifurcaram-se – também literalmente. Dali em diante, Severina seguiria sozinha, por outra estrada. E no percurso dela, haveria morte – e não vida.
Imaginar como era a cabeça do filho dentro dela foi um dos horrores vividos por Severina nos três meses que se seguiram. Ela tinha, naquele momento, um medo e uma esperança. O medo era o de machucar, com algum movimento mais brusco, aquela cabeça em que o médico disse e o ultrassom mostrou que faltava uma parte. Para ela, era como uma ferida aberta. Numa ocasião, Severina sentiu-se mal e botou para fora um vômito escuro. Pensou que era sangue. E sofreu atrozmente por pensar que tinha machucado a cabeça do bebê.
A esperança, Severina só às vezes confessava. Mas pensava, quase sempre, que algo mágico aconteceria de repente, e a cabeça do filho seria reconstituída dentro dela. A cada sensação diferente, essa fantasia reacendia-se. Severina então me dizia, meio envergonhada: “Eu sei que não pode ser, o médico disse que não acontece, mas será que...?”.
Enquanto esperavam por uma decisão judicial, em horas e horas de cadeira, pilhas e pilhas de papéis que não decifravam, Rosivaldo, o marido de Severina, enfrentava a curiosidade do povo na feira. Já se espalhara na pequena comunidade que ele era “o pai do bebê sem cabeça”. No próprio verbete do dicionário Houaiss, a anencefalia é definida como “monstruosidade”, o que diz bastante sobre como o senso comum percebe essa fatalidade. Na escassez de novidades da vida da cidade pequena, Rosivaldo despontou como o “pai do monstro”. E quando ele alcançava a feira para vender seus pés de brócolis, precisava se conter para não responder com violência física à agressão verbal da vida concreta dos dias.
Só quando a autorização judicial chegou, Severina reuniu forças para uma providência que até então não tivera coragem de tomar: comprar a roupa com que o filho seria sepultado. O ato transformou-se numa violência muito maior do que já era – uma violência que me faltou repertório para prever. Severina queria uma roupinha com capuz para impedir que a cabeça malformada do seu bebê ficasse exposta à curiosidade pública no enterro. Severina desejava pelo menos poder proteger seu bebê na morte. É importante lembrar que, agora, não era mais um aborto, como teria sido no início da gestação. Agora, seria um parto. Haveria um enterro e, para sempre, um filho sepultado. E, no caso de Severina, existiria ainda a insanidade de um bebê sem certidão de nascimento – mas com atestado de óbito.
Como venho do Estado mais frio do Brasil, eu jamais supus que encontrar uma touca poderia ser um problema. Mas, no clima tropical do Recife, Severina não conseguiu achar uma roupinha com capuz. E o inusitado do pedido fez com que ela se sentisse obrigada a explicar, de loja em loja: “Ele não vai viver”. Prometi, então, que depois que ela fosse internada, eu procuraria por ela. Encontrei no dia seguinte, em um shopping, uma roupinha branca com uma touca que ela ficou acariciando no hospital com os olhos afogados. Depois, buscou o álbum de fotografias de seu filho, Walmir, então com 4 anos. Acariciou cada foto em silêncio – cada uma delas uma prova de que ela poderia gerar um filho vivo.
Na rede pública de saúde, desenhou-se a estação seguinte do calvário severino. Ela foi empurrada de um hospital a outro, com a autorização judicial na mão. “Não há vagas”, “meus colegas são contra o aborto”, “tenha paciência”. Não fosse Paula Viana, da ONG Curumim, ajudar Severina a fazer cumprir seus direitos duramente conquistados, sua peregrinação duraria ainda mais tempo, como é mostrado no documentário.
Severina suportou mais de 30 horas de trabalho de parto, a maior parte delas com contrações excruciantes. Quando não tinha mais posição, arrastava-se até o corredor. Era inevitável encontrar-se com uma mãe feliz com seu bebê – vivo – no colo. Nesses momentos, os olhos de Severina gritavam uma dor que eu nunca vi no olhar de outro ser humano. Se a tortura de Severina fosse resumida em uma só cena, seria aquele olhar. Aquele olhar que palavras são insuficientes para descrever. Entre todas as mulheres da maternidade, Severina seria a única ali que, ao final, teria um caixão – e não um berço.
E assim foi.
Severina está longe de ter sido a única mulher torturada nesses anos todos, apenas que sobre a tortura dela há documento. Espero dormir na quarta-feira em um país que não torture mulheres porque tiveram a infelicidade de gerar um feto sem cérebro.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Jean-Luc Mélenchon, Toulouse-2012

Reproduzo abaixo, um dos maravilhosos discursos do melhor candidato de todos os tempos que a França jamais teve. No entanto, acredito que a derrota do pequeno Napoleão Sarkozy - mesmo que seja para o socialista Hollande - já terá significado emblemático para toda a Europa nos próximos anos. Os grifos são meus.


O discurso foi traduzido e distribuído pelo pessoal da Vila Vudu cujo trabalho tem sido fundamental nos últimos tempos nos ajudando na divulgação de reportagens e textos que normalmente nos são cerceados pela brasileira. Aqui no blog é possível encontrar outros trabalhos do grupo.
------------------------------------------------------------------------------------

5/4/2012, Discurso da Place du Capitole, Toulouse[1]
http://frontdegauche-aube.blogspot.com.br/
Vídeo 28’22, discurso transcrito e traduzido
[Apresentadora] Nosso encontro hoje em Toulouse é multilocal. A Place du Capitole está lotada, completamente lotada. A Place Wilson, com dois telões, está lotada. As ruas adjacentes estão lotadas. Essa noite, somos 70 mil pessoas, para acolher Jean-Luc Mélenchon, candidato da Frente de Esquerda, à presidência da França.

[Mélenchon] Boa noite, saúdo vocês, todos e todas que vieram, acorrendo ao apelo que lançamos. Saludo también a vosotros de España que han venido. Con respecto también a la gloriosa bandera de la Republica! [em espanhol]. Aí está, a força que se reúne, que se estende, que se afirma. E convoco-os a fazê-la crescer ainda mais, até o encontro na noite das eleições, fim da primeira etapa de nossa insurreição cidadã.

Peço-lhes que continuem a construir adiante, essa grande força, coerente politicamente, educada, disciplinada pelo livre consentimento, de adesão a um programa, não a uma pessoa. Porque é o que propomos ao país. Para superar o desafio que teremos de superar contra todos que se reunirão contra o movimento que o povo francês empreenderá, será preciso que cada um, cada uma, saiba o seu lugar, o seu posto de combate, o trabalho que lhe caberá fazer, para levar pela mão, pelo espírito, pelo coração, o vizinho, a vizinha, todos percorrendo o caminho necessário para fazer o que tem de ser feito.

Meus amigos, estamos no mês Germinal[2]. Os botões já se abrem e já há promessas de frutos. Assim também a nossa palavra, saindo já do inverno gelado da política, volta voando, para dar a cada um, a cada uma, novas razões para viver e ter esperanças. Essa palavra é “partilha”. Partilha, partilha. Partilhar. Partilha da riqueza, do planejamento ecológico, cidadania, fraternidade, amor, interesse pelo que tombou, para que se levante, pelo que nada tem, que seja ajudado.

Essa palavra, partilha, é como a chave que abre as cadeias nas quais está presa a própria razão de viver. Ela não se confunde com as abjetas contabilidades a que somos obrigados todos os dias, para decidir se nos alimentamos, ou se moramos, ou se pagamos a conta de energia elétrica. 


Aqui está, Sr. Sarkozy, nossa resposta. O senhor disse que não compartilha nenhum dos meus entusiasmos ou engajamentos. É verdade. Não somos do mesmo clã. Não somos a mesma França. 

O senhor diz, falando afinal a um Mélenchon que faz cada dia mais pressão, que bastam dois dias, para pôr por terra cinco anos de esforços. Não são cinco anos de esforços. São cinco anos de fracassos, cinco anos de recuo. Cinco anos de grosseria, de vulgaridade. De rebaixamento da pátria. Ao senhor que, todos os dias, vem pedir-nos contas, e que novamente nos pede agora, calculando ‘por alto’ o que “custaria” nosso programa, que quer dar a cada um os meios para viver a vida com dignidade e tranquilidade. 

Agora, sou eu que lhe pede contas: qual é o custo da infelicidade que se dissemina, e o custo da ignorância que o senhor disseminou, cortando empregos de professores? Qual é o custo da saúde perdida, quando os pobres não encontram meios para se tratar? Qual é o custo das 564 pessoas que todos os anos morrem no trabalho? Qual o custo dos 43 mil mutilados para sempre no trabalho? Qual o custo da a primeira infância esquecida? O maior tempo de trabalho, antes da aposentadoria? A prisão de menores. Peço-lhe contas, eu, por essa sociedade absurda. Peço-lhe contas, por ter feito com que a expectativa de vida já diminua, nos países desenvolvidos, depois de anos de aumento constante. 

Peço-lhe contas, eu, por ter posto em risco o primeiro direito, que a gloriosa revolução de 1789 consagrou, acima de todos os outros direitos: o direito à existência. Ah, não! Viver não é passar a vida sobrevivendo.

Não se pode viver feliz num oceano de infelicidade. Não se pode viver feliz, se há um milhão de pobres, um milhão sem moradia digna, na 5ª potência do mundo. Não se pode viver com medo do amanhã, como é o caso de dez milhões de trabalhadores precários. 

Aí está, e confesso: nosso programa não é realista, mesmo, para os seus padrões contábeis, Sr. Sarkozy! Mas é realista, para os nossos padrões. E nosso padrão chama-se O Direito de Viver!

Vejam aí, todos os que nos perguntam, o que é esse fenômeno que enche essa praça e outras praças e as ruas em torno: essa é a nossa revolução cidadã, que começou. [Resistência! Resistência!] 

Convocamos, nós, essa mobilização, aqui, como na Bastilha, e como faremos também em Marselha, em alguns dias. É uma mesma marcha. E vemos aqui, lá, que vocês respondem ao nosso apelo. Sabemos que vocês responderão, porque já terão passado por esse ‘ensaio geral’, aqui. E amanhã, se eu for eleito, e outra vez os convocar, vocês responderão. Mas, seja quem for o eleito, nada e ninguém, nunca mais, conseguirá meter outra vez no velho leito, o rio que já transbordou.

Convocamos esse 2º Rassemblement para refundar nossa República. Vocês sabem, numa nação política como a nossa – que não se define por uma cor de pele, nem uma religião, sequer por uma única língua –, a República é o fundamento da nação, não o contrário. Refundar a República é refundar o próprio povo, repô-lo, lá, como fundamento. É refundar a pátria comum, hoje desfigurada pela desigualdade e os saqueios de todos os tipos. 

Queremos que se convoque uma Assembleia Constituinte, cujo primeiro papel será definir a regra de vida comum. 

Já não se pode aceitar que, para enfrentar o desafio gigantesco da catástrofe capitalista que devasta o mundo inteiro e a catástrofe produtivista que ameaça os seres humanos. E os poderosos, incapazes de pensar em outro mundo e em outra organização, abandonam os movimentos a eles mesmos e não reconhecem outra lei que não seja a do interesse deles. 

Não se pode mais aceitar que a hierarquia das normas, no nosso país ou na Europa, seja dominada pela liberdade de empreender, a concorrência sem regras e a competição de um contra todos. 

Exigimos que, na base da hierarquia das leis de nossa sociedade sejam postas a solidariedade e a cooperação.

Não podemos mais aceitar que a liberdade de empreender e o direito de propriedade sejam tornados equivalentes a direitos fundamentais, e que tudo seja subordinado àquela liberdade. 

Acreditamos, ao contrário, que é hora de estabelecer a cidadania em tudo, não só na cidade, mas também nas empresas. E, portanto, é hora de reconhecer como direito constitucional o direito de preempção, que garantirá que os trabalhadores, desde que o desejem, possam constituir cooperativas operárias e tornem-se proprietários dos meios de produção. 

Queremos que o interesse geral seja mais forte que os interesses particulares e que, desde que a situação o imponha –, porque um interesse fundamental econômico da nação seja afirmado e verificado numa ou outra circunstância –, haja para o governo, quer dizer, para a nação ela própria, um direito de requisição, que impeça que escândalo como o..... nunca mais seja possível, em nosso país.

E que se estabeleça um direito de veto dos assalariados, nas questões relativas ao futuro estratégico de sua empresa empregadora e ao impacto ambiental do que a empresa produza.

Aqui, retomamos o fio que o grande Jaurès teceu para nós, nessa região. A democracia política, nos ensinou ele, expressa-se numa ideia central, ou melhor, numa ideia única: a soberania política do povo.

“Soberania do povo” significa: só obedecer à lei para a qual nós mesmos, cada um, pessoalmente, tenhamos contribuído, pelo nosso voto. Só temos de obedecer a lei, porque ela reconhece e assegura a norma comum, porque ela foi decidida por nós, todos juntos. Eis o que significa “soberania do povo”. Portanto, “soberania popular” é outro nome da liberdade. Vocês não são livres, quando não são soberanos, porque são obrigados a obedecer a leis que lhes são impingidas, porque são decisões decididas longe de vocês e sem vocês.

Relembro aqui o caso de um crime[3] cometido pelo presidente da República [Chirac], que, depois de o povo ter votado “Não” à Constituição [da Europa] em 2005[4], por 55% dos votos, o presidente mesmo assim negociou outra proposta de tratado de aprovação da Constituição Europeia, em tudo idêntica à primeira, que fez aprovar no Congresso de Versailles [vaias, vaias], com a cumplicidade dos que se abstiveram ou votaram a favor, no referendum

Peço-lhes contas, eu, e pergunto: onde está nossa liberdade? 

E ainda mais: qual é o sentido dessa próxima eleição, se vocês escondem dos franceses que, se votarem num dos partidos do Tratado de Lisboa, que se preparem para aprovar o próximo tratado Merkel-Sarkozy, seja votando a favor, seja abstendo-se, como já fizeram, pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade? 

Onde está nossa liberdade, qual o sentido dessa eleição, se nos anunciam que, seja qual for o resultado, aconteça o que acontecer, em todos os casos, seremos obrigados por acordos internacionais a submeter o orçamento da França à aprovação prévia da Comissão Europeia? Se teremos de submeter todos os nossos empréstimos àquela aprovação prévia?

Por isso digo que, se não há mais liberdade, se não há mais soberania do povo, a insurreição cidadã é dever sagrado da República.

Onde está nossa liberdade, nossa soberania, ante a catilinária, sempre a mesma, mas sem que eles jamais digam, em nenhuma assembleia, em nenhum comício, que, votem como votarem, façam o que façam, todos eles preparam, com seus votos cúmplices, uns com os outros, o que eles mesmos chamam de Grande Mercado Transatlântico 2015, porque o candidato deles, seja qual for, nos unirá para sempre, sem barreiras alfandegárias, sem barreiras jurídicas, aos EUA?

Onde está nossa liberdade, se, dessa vez, elejamos quem for, dos candidatos deles, teremos de admitir que continue o que não queremos que continue – mas nem temos como dizer que não queremos – que continue a privatização dos serviços públicos? Que não queremos que continue a demissão de trabalhadores pobres de outros países europeus, que eles põem a trabalhar aqui a preço vil, desgraça à qual se soma também a deslocalização interna.

Onde está nossa liberdade? Está na urna eleitoral, que, dando o poder à Frente de Esquerda, abolirá todas essas medidas, porque a França não mais as subscreverá.

Onde está nossa liberdade, quando nossa soberania confiscada por nossa implicação num comando militar integrado no interior da OTAN, nos amarra a todas as expedições militares dos EUA que detonam um choque de civilização, que não desejamos?

Por isso, trate-se do Tratado Europeu, ou dessa participação da França que os franceses não desejam, na OTAN, declaramos aqui que esses dois ‘engajamentos’ serão submetidos a referendum popular.

Que os franceses se manifestem: a França deve deixar o Comando Integrado e a própria Aliança Atlântica. 

A França, como é de sua tradição e de sua história, deve propor ao mundo uma outra aliança, altermundista, independente dos EUA. 


A França deve engajar-se na renovação de organizações internacionais que sejam legítimas aos nossos olhos, não essas que resultam dos G-8, G-20 e de todas essas sinecuras onde os poderosos ordenam ao resto do mundo o que devem sofrer e padecer. Mas, ao contrário, os organismos da ONU renovados pela ação da própria França. 

Uma França que não mais praticará essa defesa, de geometria variável, dos direitos do homem, utilizada para ingerências mais que duvidosas. 

Uma França que afinal defenderá em todos os cenários e frente a todos, sem jamais ter de baixar os olhos, as causas que nos animam e que fizeram com que nossas revoluções nunca fossem revoluções só para os franceses, mas para a humanidade universal e defenderam os direitos universais do mundo.

Falo aqui, notadamente, da defesa, aqui e na esfera internacional, para que seja reconhecido, na França e em todo o mundo, o direito universal ao aborto, base do direito humano essencial de dispor de si mesmo, para metade da humanidade.

Falo aqui de lutar contra a pena de morte, não só na China, mas também nos EUA.

Lutar ante o mundo inteiro, dizendo, eis aqui os franceses, e propomos o que já propôs o presidente Evo Morales, presidente de esquerda, da Bolívia. A França propõe, como o presidente Morales já propôs, que se crie um Tribunal Internacional que julgue e puna os crimes ecológicos cometidos contra a humanidade.

Não, senhor presidente Sarkozy, diferente do que o senhor declarou ao chegar ao poder, o primeiro perigo não é a confrontação entre o ocidente e o Islã. O primeiro perigo é que a França está convertida em rota de socorro do carro imperial, que é a principal causa de perturbação no mundo.

A França da 6ª República que queremos construir não é uma nação ocidental. Não é, nem pelo seu povo mestiço, nem pelo fato de que a França existe em todos os oceanos do mundo, vive e brilha perto dos cinco continentes: Nova Caledônia, Réunion, Polinésia, Maiote, Caraíbas, a Guiana Francesa, que é a mais longa fronteira francesa, 800km de fronteiras com o Brasil. 

Não, a França não é nação ocidental. A França é nação universalista. Somos e queremos ser, porque a história nos legou o primeiro modelo de nação universalista. E vamos em busca de viver à altura desses princípios. 


Vocês são convocados para essa grande missão, não para esse miserável blá-blá-blá dos politiqueiros da UNP. Mais uma vez, teremos de ser esse estandarte ardente do qual brilhará outra vez a chama das revoluções, que por contágio, se torna causa comum de todos os povos da Europa. 

Já abrimos a brecha. Doravante, não precisamos de conselhos ou autorização de ninguém, porque somos uma força adulta, consciente, disciplinada, educada, politizada. 

Abriremos a brecha pela qual passarão nossos irmãos e irmãs da Grécia, para por fim à abjeta ditadura das finanças que saqueou seu país. 

Abriremos a brecha pela qual, em outubro próximo, passará também o povo alemão.

Abriremos a brecha no muro da resignação que, por toda a parte pegou o povo pela garganta. E eles nos dizem que somos a ruína! Quando eles organizaram a ruína e hoje, aplicam sua política podre, por toda a parte.

Estamos no mês Germinal. Logo virão os frutos, França, bela e rebelde, chegam o tempo das cerejas[5]e os dias felizes. Viva a França! Viva a República! Viva a República Social! 



[1] Em francês, é o segundo vídeo da página, em http://www.dailymotion.com/user/PlaceauPeuple/subscriptions/2012-04-07/2:1?mode=playlist&from=email_subscriptiondigestusersunlogged&utm_source=Email&utm_medium=Email&utm_content=SubscriptionDigestUsersUnlogged&utm_campaign=Alert-SubscriptionDigestUsersUnlogged#video=xpy9av
[2] Germinal é um mês do calendário republicano introduzido durante a Revolução Francesa, primeiro mês da primavera e, por metáfora, do renascimento do mundo. Dá título também a um romance de Émile Zola sobre a revolta operária (Germinal [1885], SP: Companhia das Letras, 2000, 1ª edição, trad. Silvana Salerno) [NTs].


[3] Orig. forfaiture. Antes do Novo Código Penal francês, qualquer crime cometido por funcionário público, no exercício de suas funções. O novo Código Penal suprimiu esse tipo de crime específico de funcionário, agente público ou pessoa investida em missão de serviço público, e a ação correspondente passou a constituir circunstância agravante. Em http://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/forfaiture/34601 [NTs].


[4] Em 29/5/2005, no governo de Jacques Chirac, os franceses votaram em referendum, se a França aceitaria a proposta apresentada no Parlamento Europeu, de Constituição da União Europeia. A pergunta proposta no referendum foi: “Você aprova o projeto de lei que autoriza a ratificação do tratado que estabelecerá uma Constituição para a Europa?”. 55% dos votantes franceses rejeitaram a ratificação daquela proposta de Constituição Europeia, o que fez da França o primeiro país a rejeitar a proposta, e pôs a França como alvo das pressões de outros países interessados em rápida aprovação. O Partido Socialista dividiu-se naquele referendum: François Hollande liderou a ‘facção’ favorável ao “sim” e Laurent Fabius (de uma tendência de direita, dentro do PSF), a ‘facção’ favorável ao “não”, minoritária. Ante o “não” do referendum, Chirac apareceu com uma ‘outra versão’ para a mesma Constituição Europeia, em tudo semelhante à primeira, cuja aprovação negociou com deputados e senadores. Esse ‘segunda versão’ foi aprovada por deputados e senadores franceses, com os socialistas votando com Chirac. Mélenchon, em 2005, ainda estava no Partido Socialista, do qual se separou em 2008, para criar a Front Gauche [NTs, com informações de http://en.wikipedia.org/wiki/French_European_Constitution_referendum,_2005].

[5] Le Temps des cerises é canção de 1866, versos de Jean-Baptiste Clément, música composta por Antoine Renard em 1868. Pode ser ouvida, cantada por Yves Montand, emhttp://www.youtube.com/watch?v=aNDDKU1cTWk&feature=related

Feed do Substantivu Commune