"Se não estás prevenido ante os meios de comunicação, te farão amar o opressor e odiar o oprimido" Malcom X

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Reconsiderar o discurso de Ruffato em Frankfurt

Valter Campanato /Agência Brasil

Por Juliana MSC
"O que significa ser escritor em um país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo 'capitalismo selvagem' definitivamente não é uma metáfora"

A polêmica abertura da Feira do Livro de Frankfurt protagonizada por Luiz Ruffato em 2013 - que levou Ziraldo a uma quase síncope nervosa - precisa ser revista (com mais lucidez agora) e refletida por todos nós. O texto duro, considerado "inadequado" para a abertura de uma feira literária que, ainda por cima, naquele ano homenageava nosso país, adquiriu ares de profecia se considerarmos o que ocorreu em nossa conjuntura desde então.

"Embora a afirmação de nossa subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro - é a alteridade que nos confere o sentido de existir - o 'outro' é também aquele que pode nos aniquilar"

Me chama a atenção o quanto esse atual cenário de ruptura está nos levando a legitimar, de maneira alarmante, violências subjetivas como a misoginia característica de parcela da nossa sociedade, sem que esse recrudescimento seja percebido pela maioria dos homens (e boa parte das mulheres). Com exceção daqueles poucos que compreendem a luta feminista para além do "mundo feminino" que só existe no imaginário do Vice.

Tantos anos de luta por direitos, à custa de muitas lágrimas (e perdas) e as mulheres precisarão reiniciar os debates, refazer caminhos, reeducar seus meninos e meninas. Estamos caminhando surpreendentemente rápido nessa "ponte para o passado", uma regressão (até mesmo psicológica) que vai contaminando as pessoas sem que elas percebam.



Em alguns casos reflito se todas essas "bestas" internas já não estavam ali, guardadas, enrustidas, aguardando a oportunidade de se sentirem libertas de tantas amarras ideológicas que foram tornadas leis, políticas públicas ou cultuadas politicamente em uma conjuntura social de um governo popular.

"Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê (...) o semelhante torna-se o inimigo"

Já não bastavam jovens cultuando personagens nefastos como 'Bolsonaros' e cia - na contramão inclusive do que é típico da juventude, que é a identidade libertária - parece que vamos ter de lidar também com piadas preconceituosas renovadas, agressões naturalizadas, o machismo tornado "institucional".

"E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença."

Até mesmo personalidades como Marta Suplicy, que um dia foi referência vanguardista por trazer o diálogo sobre o feminismo para a televisão brasileira (em plena ditadura militar!), se apequenou para legitimar a sucessão de violências que foram e ainda estão sendo cometidas. Não só contra as mulheres, mas também contra a diversidade, a cultura, a educação, os direitos humanos.

Ou seja, além do acúmulo de ódio de classe, de gênero, racismo, da xenofobia, da intolerância que nos levou (como sociedade) a este estado de coisas, caminhamos a passos largos para um aprimoramento não do que temos de melhor como nação, mas sim do que há de pior, daquilo que antes era vergonha e que hoje vem sendo, pouco a pouco, tornado sinônimo de "sucesso". Uma inversão de valores gritante e que é amplificada pelo tratamento antiético  da mídia de massa que embarcou no golpe de Estado e se recusa a narrar os fatos com o mínimo de honestidade intelectual. O resultado é que uma população, como lembra Ruffato, "formada por uma maioria de analfabetos funcionais" sequer é capaz de fazer a crítica da informação-produto que consome.

Ou não lemos Gilberto Freyre, Nelson Werneck Sodré, Jorge Amado, Darcy Ribeiro e outros teóricos de nossa identidade cultural, ou escolhemos esquecer tudo o que vivemos e, se é assim, "estaremos condenados a repetir nosso passado", como nos ensina o filósofo George Santayana.

Daí porque volto a mencionar Ruffato que, em Frankfurt, escolheu não dourar a pílula e falar do que realmente nos faz brasileiros.

Para quem quiser ouvir os quase 12 minutos em que  o escritor Luiz Ruffato coloca o dedo em nossas feridas:


domingo, 15 de maio de 2016

Incertezas da Participação Social no Governo Golpista



*Marcelo Pires Mendonça
Os recentes acontecimentos na política brasileira, que consolidaram um golpe contra o estado democrático de direito depois de um período histórico curto – apenas 31 anos – de democracia contínua, nos confrontam com um retrocesso sem precedentes considerando os avanços e conquistas na seara dos direitos sociais e humanos, da garantia da estabilidade institucional, dentre outros. Diante de um cenário em que a direita brasileira assume que desistiu das regras estabelecidas para o “jogo” da nossa frágil democracia materializada no processo eleitoral e no resultado das urnas, a legítima reação das ruas ao golpe a partir da mobilização das esquerdas é a resposta possível. E foi esta lição das ruas, da força da luta, da pertinência dos movimentos sociais que permitiram o fortalecimento da participação social como método de governo e como política pública efetiva nos últimos 13 anos. A participação social, sobretudo em suas instâncias mais maduras que são os conselhos, conferências e ouvidorias, tem sido um assunto ainda pouco debatido neste cenário de terra arrasada que a direita vem nos impondo. Entretanto, já observamos os primeiros ataques com o caso acintoso da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) que é supervisionada por um Conselho Curador, composto majoritariamente de representantes da sociedade civil, e que segue ameaçada de sofrer intervenção em sua diretoria.
O caso da EBC – empresa de comunicação isenta que tem feito o contraponto à parcialidade flagrante da mídia hegemônica – é um importante indicativo do que se pode esperar do atual governo interino para as políticas de participação social, conselhos, conferências, ouvidorias e demais instâncias. Considerando, por exemplo, que os Conselhos Nacionais possuem uma estrutura análoga à do Conselho Curador da EBC e que o atual governo não demonstra qualquer apreço à legalidade constitucional, depreende-se assim que não há garantias para a continuidade destas instâncias com autonomia nos seus atos e respeito às suas prerrogativas. Um exemplo pertinente é a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, emblemático do atual cenário de indefinição institucional, pois somente este órgão contava com oito relevantes Conselhos Nacionais integrando sua estrutura: o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, o Conselho Nacional da Juventude, o Conselho Nacional de Políticas de Igualdade Racial, o Conselho Nacional de Direitos Humanos, o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, o Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso e o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. O destino destas, como todas as outras instâncias de participação social e das políticas públicas atinentes segue ameaçado.
Atualmente a participação social se materializa nos 42 Colegiados de Políticas Públicas, sendo 35 Conselhos Nacionais, seis Comissões Nacionais e um Fórum Nacional que procuram atuar nos marcos da Política Nacional de Participação Social (PNPS), principalmente no que se refere à sua composição, por apresentarem uma significativa participação da sociedade civil. Cabe ressaltar que de 1941 a 2016 foram realizadas 156 Conferências Nacionais, das quais 115 ocorreram entre 2003 e maio de 2016, ou seja, mais de 73% do total de Conferências Nacionais ocorreram nos últimos treze anos, abrangendo 45 áreas setoriais em níveis municipal, regional, estadual e nacional e mobilizando mais de dez milhões de pessoas no debate de propostas para as políticas públicas. Tais números evidenciam a relevância dada pelos governos Lula e Dilma à participação social e popular na construção das políticas públicas. Somente entre os anos de 2015 e 2016 foram convocadas 13 Conferências Nacionais, das quais seis ocorreram em 2015 e outras sete estavam previstas para 2016, sendo que destas seis já foram realizadas entre os meses de março e abril.
Estes dados revelam a consolidação da participação social enquanto método de governo, com a ampliação e qualificação dos espaços institucionais de atuação efetiva da sociedade civil organizada ou não, dos movimentos sociais, entidades, etc. Revelam, ainda, o fortalecimento das pautas históricas relacionadas às ações afirmativas e demandas dos movimentos sociais do país. Em que pesem as críticas e a necessidade de aperfeiçoamento de tais mecanismos, há que se reconhecer que nestes 13 anos foi possível iniciar o processo de transição da perspectiva quantitativa para a qualitativa destas ações. É nesta fase de transição que vivenciamos a ameaça dos retrocessos posta pelo golpe em curso. Sendo as Conferências Nacionais um espaço democrático de participação social e pedagógico de formação humana, também se constituem em esfera de conquistas. Foi no âmbito das Conferências Nacionais, organizadas pelos respectivos conselhos temáticos e setoriais que avanços como o SUS, o SUAS, o PNDH-3, os estatutos da Igualdade Racial, Juventude e do Idoso, dentre outros, foram propostos, debatidos, aprovados e aperfeiçoados.
Tais conquistas são mérito do engajamento da sociedade civil na luta social e de sua atuação propositiva nos espaços institucionais de participação social. Quando avaliamos os documentos norteadores do atual governo interino – a “Ponte para o Futuro” e a “Travessia Social” – fazemos constatações preocupantes: no primeiro, encontramos a palavra “participação” uma única vez ao longo de suas 19 páginas, sendo esta utilizada para reforçar a importância do “setor privado” para a agenda econômica do país. Já o documento “Travessia Social”, cuja ênfase são os temas da educação, saúde, Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida, sequer contém a palavra “participação”, mas faz referência à “colaboração” do setor privado. As conferências e conselhos nacionais, ouvidorias e demais instâncias de participação social sequer são mencionados, antecipando a medida do descompromisso deste governo ilegítimo com a democracia participativa – ou com a democracia sequer… Por isso, conclamamos os conselhos e conselheiras/os nacionais, delegadas e delegados das conferências nacionais e demais instâncias de participação social a se manifestarem contra todo e qualquer retrocesso e em defesa da democracia. E não nos esqueçamos das lições de Marx: “A arma da crítica não pode substituir, sem dúvida, a crítica das armas”. Para além de um posicionamento firme contra as atuais ameaças, é urgente nos mantermos em estado permanente de mobilização como enfatizou a Presidenta Dilma Roussef em seu último discurso oficial e ocupar as ruas resistindo contra toda e qualquer medida que signifique a usurpação de direitos duramente conquistados, pois só a luta muda a vida e seguiremos lutando.
Referências:
Guimarães, Fundação Ulysses. A Travessia Social. Uma ponte para o futuro. Disponível em:<http://veja.abril.com.br/complemento/pdf/TRAVESSIA%20SOCIAL%20-%20PMDB_LIVRETO_PNTE_PARA_O_FUTURO.pdf>.
Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2002.
* Formado em História e Geografia, pós-graduado em filosofia marxista-leninista pelo Instituto de Ciências Sociais de Moscou/Rússia. É professor da Rede Pública de Ensino do DF e Ex-Coordenador-Geral de Instâncias e Mecanismos de Participação da Secretaria de Governo da Presidência da República.

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