Assisti ao filme e publico aqui a opinião do Pedro Doria sobre ele, opinião da qual compartilho:
04.02.2006 Embora seja bastante bom – Steven Spielberg é contador de histórias de mão cheia – "Munique" é um filme desonesto. Tem um quê de hipocrisia, por parte da diplomacia israelense de reclamar. Israel leva de longe a melhor e seus crimes não são devidamente relatados."Munique" trata – já está em todas as folhas – do atentado que custou a vida de um bom naco da delegação israelense nas Olimpíadas de 1972 e da operação de vingança israelense que veio na seqüência. O melhor antídoto para "Munique" é "Contra-ataque", livro recém-publicado pela Ediouro, do repórter Aaron Klein. No filme, Spielberg resume todos os agentes do serviço secreto israelense, o Mossad, a um pequeno grupo. Necessidade dramática: faz parte. Numa das cenas, Mahamoud Hamshari, o embaixador da OLP em Paris, está a beira de ser assassinado, seu escritório explodirá, quando repentinamente os agentes percebem sua filhinha entrando no apartamento. Momento de sufoco. Tudo pára. Ela sai. Aí explode. De fato, Hamshari morreu quando o escritório em seu apartamento parisiense foi pelos ares, realmente tinha uma jovem filha. A cena, no entanto, é coisa de cinema. Serve para limpar a vingança israelense, fazer com que pareça mais justa, só se mata culpados. Só que não é verdade. Talvez até fosse a intenção inicial. Se tanto. Outra das vítimas da vingança israelense que aparecem no filme é Wael Zu'aytir, tradutor das "Mil e Uma Noites" para o italiano. Em momento algum fica claro que, embora ele fosse ligado à OLP, era cachorro pequeno, talvez não mais que um militante. Ninguém jamais conseguiu justificar estrategicamente sua morte – pode ser que tivesse envolvimento terrorista. Não há provas.
A morte mais absurda, no entanto, o mais trágico e cruel deslize do Mossad, Spielberg deixa de fora. Em julho de 1973, um grupo de agentes abateu a tiros o garçom marroquino Achmed Bouchiki na pequena cidade de Lillehammer, a 160 quilômetros de Oslo, na Noruega. Uma série patética de erros de avaliação, confusões e amadorismo convenceram os agentes de que o sujeito pacato sempre acompanhado de uma jovem norueguesa grávida era Ali Hassan Salameh, que caminhava para ser segundo de Yasser Arafat na hierarquia da OLP. Bouchiki não era ninguém – havia fugido do mundo árabe atrás de uma vida com emprego e civilidade à volta, estava casado e à espera do primeiro filho. O pesadelo do Oriente Médio tragou-lhe a vida, foi morto na frente da mulher no sétimo mês quando voltavam do cinema, fizeram do porvir desta família um pesadelo ininterrupto. Israel jamais reconheceu oficialmente o erro. Assim, "Munique" de Steven Spielberg é parcial – incrivelmente parcial e desonesto porque dá ao Mossad uma eficiência que ele não tem e um coração que jamais pretendeu ter. Nem caberia tê-lo a serviço secreto algum. Ainda assim, Israel não gostou. Problema de Israel. Klein, chefe do escritório da revista "Time" e autor deste "Contra-ataque", é judeu como Spielberg. Seu livro lê-se como romance de espionagem, um ritmo rápido, capítulos curtos à velocidade de cada ataque. E muito além das dúvidas transcendentais de um personagem fictício como o do filme, ele está sempre perguntando coisa mais simples: adiantou de algo? O primeiro erro israelense foi não proteger seus atletas, sequer cogitar que poderia haver um ataque em Munique. Houve – e trágico.
Talvez a fotografia mais marcante do caderno de imagens do livro seja a última. Na vila olímpica há várias bandeiras, a de Israel entre elas: única a meio pau. Visto de hoje, é surpreendente. A vila olímpica é invadida, terroristas armados dizimam com um grupo de atletas e apenas a bandeira do país vítima está a meio pau? Os jogos foram retomados após a mortandade e só Israel ficou de luto. O país tinha todo o direito de sentir-se só no mundo. Basta olhar a história do século anterior a 1972: toda ela está dizendo que se os judeus não defenderem-se a si, ninguém o fará. Ninguém sequer vai chorar. A estratégia adotada foi a de matar em troca. Muito rápido, aprende-se no livro, descobriram que os nomes no topo da Fatah ou de seu braço terrorista, o Setembro Negro, ou eram desconhecidos ou eram difíceis demais de atingir. Assim sendo, optaram, sem jamais reconhecer publicamente, por gente do terceiro escalão ou mais abaixo. Algumas poucas vezes – duas – foram ousados. É o caso do assassinato numa explosão de Salameh, anos após o fiasco norueguês. Ou então da operação espetacular em Beirute, liderada pelo futuro premiê Ehud Barak, que matou três da cúpula da OLP em uma noite. Esta operação foi o que selou o mito de eficiência do Mossad. Entrou na capital libanesa, onde os homens de Arafat sentiam-se seguros, matou três dos mais importantes, foram embora. Arafat estava num prédio na esquina, o próprio Salameh não estava longe. Todos moravam ali naquele quarteirão e visitavam-se toda hora. Os palestinos ficaram atordoados, também com eles colou o mito da infalibilidade do serviço secreto israelense. Acharam que salvaram-se naquela noite fatídica porque, diferentemente de seus companheiros, tinham guardas-costas. Qual que nada: Israel não sabia que tinha mais líderes por perto. A inteligência, sempre ela, era falha.
Mais incrível é a postura européia. Enquanto israelenses e palestinos matavam-se nas cidades da Europa, os governos europeus lavavam as mãos. O Mossad só foi à Justiça e cobrado pesadamente na Noruega, e ainda assim porque matou um inocente. Os árabes escaparam, em grande parte, sem qualquer desgaste. Em menos de um ano os terroristas responsáveis pelo massacre de Munique por exemplo estavam libertos pelos alemães – foram trocados por reféns de um avião seqüestrado. E há quem diga que o seqüestro foi combinado. Tratava-se de um avião da Lufthansa com poucos passageiros, nenhuma mulher. Lentamente, a OLP de Arafat abandonou o caminho do terror e abraçou o diplomático. Foi por que Israel respondeu de forma firme? Talvez. Por que jamais cedeu à chantagem? Talvez. Mas e se Israel adotasse uma estratégia meramente defensiva? A resposta de uns é que, sem manter a liderança da Fatah freqüentemente preocupada com a própria segurança, os ataques seriam ainda mais numerosos e ousados. A estratégia israelense não mudou nestes últimos anos. Há quem a chame de terrorismo de Estado – e isto não inclui apenas os assassinatos dirigidos. Inclui, por exemplo, as casas palestinas destruídas. As muitas prisões. Mas até que ponto uma política mais conciliadora, menos terrível, poderia atingir bons resultados na disputa diplomática pela paz? Quando, na história do mundo, um cordeiro conseguiu qualquer coisa perante o lobo?Porque este é o dilema que se apresenta no Oriente Médio. Há uma diferença fundamental na maneira de matar israelense e na maneira de matar palestina. Israel procura matar gente culpada. E quando mata inocentes, seja em tiroteios, seja por erros indefensáveis, seja como for, é cobrada. Palestinos matam em quantidade e deles pouco é cobrado. É natural, talvez: um é um país formado, um Estado nacional. O outro não é país, ninguém responde por ele. O outro é fracionado em grupos e grupos, um não se responsabiliza pelo outro. Tudo verdade. Mas impossível não reconhecer o fato de que a situação não tem nada de elementar. Aaron Klein não chega a qualquer conclusão: apresenta como Israel respondeu à campanha assassina movida pela OLP. No final desta história estão Isaac Rabin e Yasser Arafat dando-se as mãos, Clinton ao centro. Impossível, francamente, saber se daria para ser diferente.
Como é impossível dizer se há uma lição no passado para lidar melhor com o Hamas ou qualquer outro entre agora e a proclamação da independência palestina.
Por Pedro Doria em No Mínimo
Por Pedro Doria em No Mínimo
Um comentário:
Ótima crítica, justa, imparcial e reflexiva.
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