Estamos seguindo por esta estrada empoeirada num calor absurdo pelas montanhas da Bolivia. No caminho podemos ver que o país ainda é muito pobre. Pequenas casas feitas de adobe aparecem vez ou outra na paisagem que lembra um pouco o cerrado mas bem mais árida, com cactos e uma vegetaçao rasteira cheia de grandes espinhos. Os animais parecem até gordinhos mas nao se vê água de forma alguma. Muitas e muitas montanhas e nenhum córrego, cachoeira ou rio. Éste, aliás foi um dos motivos da queda do Che. Quando o exército boliviano o encontrou, ele e seus companheiros estavam debilitados pela falta de água e comida. Mas a paisagem ainda assim é exuberante. Vamos conversando, rindo muito, todos animados nesta viagem a 3600m acima do nível do mar. Alguns mascam folhas de coca para aguentar a pressao e tivemos uma pequena parada porque um dos meninos cantores da familia gaucha "Guedes" se sentiu mal. Nada serio. Muitas curvas fechadas, solavancos, algumas cholas (índias da regiao) no caminho com seus pequenos bebes enrolados em mantas coloridas nas costas.
Uma parada na Quebrada del Churro para o depoimento de D. Crescencia que vive nas terras onde capturaram o Che. Ela conta que tinha 18 anos na epoca e que levava escondida comida para eles a pedido de sua mae. El Che era um homem alto que sorria pouco e estava naquele momento sofrendo com constantes crises de asma. Ao ser baleado, caminhou ate Vallegrande, cerca de 6km estrada acima com a ajuda dos companheiros sobreviventes e de alguns militares. Estava sujo, maltrapilho e com muitas feridas. Ela diz que acredita que ele seja um santo e que reza sempre para San Ernesto.
Depois de cerca de quatro horas vimos ao longe e acima alguns telhados que aos poucos vao se desenhando. Vallegrande começa a surgir na paisagem quando parecia que nao chegaríamos mais. Uma pequena cidade que poderia ser confundida com qualquer outra do interior do Brasil com arquitetura colonial com influências espanholas e um pouco de barroco, pequenas casas, uma praça central e uma grande igreja. Muitos estudantes, viajantes, hippies, apenas por um detalhe podemos ver que nao estamos no Brasil: o sotaque dos que passam por nós. Chilenos, peruanos, argentinos, uruguaios, com exceçao dos companheiros da delegaçao ainda nao encontrei nenhum brasileiro nesta viagem. E isto porque me disseram que Santa Cruz era o lugar na Bolivia onde mais se concentram brasileiros, em especial os que vao para estudar medicina em sua universidade mais famosa. Fico pensando no porque de nao visitarmos nossos hermanos e preferirmos tanto, com nosso gosto pequeno burguês, a Europa ou os Estados Unidos. À parte minhas convicçoes ideológicas que de fato me fazem me emocionar mais por estar aqui, posso dizer com segurança que a Bolívia é um país que todos nós devíamos visitar. Além de muito bonito, incluindo seu povo que tem no rosto o traço inconfundível da herança indígena, é um lugar extremamente acolhedor onde as pessoas sorriem para vc o tempo todo e onde nao se escutam palavroes ou xingamentos. Sim, leitores, o povo boliviano é extremamente educado. Algumas coisas sao estranhas para nós como o fato de nao se exigir muito carteira de motorista e vermos tantos adolescentes dirigindo caminhonetes, o carro que mais vimos aqui, principalmente os de origem japonesa e chinesa. Mas as pessoas sao mesmo muito educadas, falam baixo, nao usam em nenhum momento o que eles chamam de grosserias. Nossa amiga e guia Yaqueline nos conta que o unico xingamento que se usa aqui, e mesmo assim so em casos extremissimos, e culumin que quer dizer que "sua mae traiu seu pai" e que eles consideram como muito feio.
Mas voltando à estrada, entrando agora em Vallegrande, deixamos nossas malas no Hotel Joanita e voltamos todos correndo para o ônibus para aproveitar a luz (conosco viaja também um jornalista da Tv Paraná e um cinegrafista) e nos dirigimos para o aeroporto, onde foram encontrados depois de 30 anos os restos do Che e alguns companheiros combatentes.
Salvo engano, acho que este foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida. Ao entrarmos naquela igreja, construída ao redor das lápides em homenagem aos combatentes, pude sentir a energia que existe na crença de cada peregrino como nós que ali esteve. Foi como se pudéssemos sentir a presença dos combatentes e de cada pessoa que por ali passou após todos esses anos e até hoje. Inexplicável.
Nossos queridos companheiros fizeram um ato ecumênico em homenagem ao Che. Cada representante, Dom Tomaz Balduíno, o monge beneditino Marcelo Barros, o Bispo anglicano Almir Silva e o Monge Jo Shin disseram uma oraçao ou proferiram palvras de reflexao sobre a importancia de se estar ali de se continuar acreditando que e possivel reduzir as desigualdades, de que e preciso lutar por uma America Latina livre. Fizemos uma oraçao coletiva, tocamos a terra, nos abraçamos. Marcial, do assentamento modelo do MST, cantou em castelhano um trecho de uma musica que fala no guerrilheiro combatente Che. Foi especial mesmo. E enquanto isso, corriamos tambem para filmar tudo, captar cada cena. Conseguimos depoimentos de alguns na area externa da igreja. O enfoque foi a mistica espiritual que existe na memoria do Che.
Seguimos viagem nos despedindo desse lugar magico em direçao ao Hospital onde, na lavanderia, lavaram o corpo do heroi e cortaram suas maos para que sua digitais fossem examinadas pela CIA e a partir dai se tivesse certeza de que o Che estava morto. Tambem ali um momento de silencio, a lavanderia agora desativada tem em suas paredes as inscricoes de milhares de pessoas de varias partes do mundo. Em diversos idiomas pudemos ler e fotografar mensagens de devoçao e palavras de ordem. O lugar é frio e tem um aspecto macabro, triste. Paira no ar um cheiro velho, de um tempo que ficou pra tras. Muitas velas, flores. O governador Capiberibe nos deu um depoimento emocionado. Ele e sua Janete estiveram na Bolivia ha muitos anos quando fugiram do Brasil, depois de presos e torturados, em um caminhao de carga pelas mesmas estradas perigosas que percorremos agora. Ele explica o porque de ter feito naquele momento sua opçcao pela luta armada e ela se diz realizada por saber que sobreviveram e se multiplicaram. Seus filhos seguem hoje seus passos.
Voltamos ao Hotel para descansar um pouco, comermos e andar um pouco pela praça, vamos visitar a Fundaçao Che Guevara e a Casa de Cultura. Muitos mochileiros, ambulantes, criancas... e a vida que segue. Amanha seguimos para La Higuera, onde mataram El Che. Volto a escrever depois.
Juli de Souza
Vallegrande - La Higuera - La Ruta del Che
E nao conseguiram calar nossa voz.
Hasta la revolucion. Siempre.
P.S.: em breve postarei as fotos da viagem. Aqui na Bolivia a internet é um pouco precária, apesar de relativamente barata.
Um comentário:
Seu relato me deu ainda mais vontade de pegar a mochila nas próximas férias e percorrer alguns lugares que há anos adio em conhecer.
Um beijo e estou ansioso pelas fotos!
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