Reproduzo abaixo o artigo publicado hoje no Correio Braziliense. Frei Betto está cada dia melhor. É exatamente isso que ele descreve que diluiu, desagregou completamente a militância dos partidos de esquerda do país e deu certeza a uma nefasta desconfiança que havia no imaginário dos brasileiros, a de que os políticos e os partidos são todos iguais, farinhas do mesmo saco, não importa a "coloração". TODOS os partidos e agremiações políticas, sem exceção, estão repletos desses personagens. Esse artigo está perfeito. Principalmente em sua conclusão, os valores estão tão invertidos que ser reacionário está quase se tornando sinônimo de resistência revolucionária!
Ser de esquerda é, desde que essa classificação surgiu na Revolução Francesa, optar pelos pobres, indignar-se frente à exclusão social, inconformar-se com toda forma de injustiça ou, como dizia Bobbio, considerar aberração a desigualdade social. Ser de direita é tolerar injustiças, considerar os imperativos do mercado acima dos direitos humanos, encarar a pobreza como nódoa incurável, julgar que existem pessoas e povos intrinsecamente superiores a outros.
Ser esquerdista — patologia diagnosticada por Lênin como “doença infantil do comunismo” — é ficar contra o poder burguês até fazer parte dele. O esquerdista é um fundamentalista em causa própria. Encarna todos os esquemas religiosos próprios dos fundamentalistas da fé. Enche a boca de dogmas e venera um líder. Se o líder espirra, ele aplaude; se chora, ele entristece; se muda de opinião, ele rapidinho analisa a conjuntura para tentar demonstrar que na atual correlação de forças...
O esquerdista adora as categorias acadêmicas da esquerda, mas iguala-se ao general Figueiredo num ponto: não suporta cheiro de povo. Para ele, povo é aquele substantivo abstrato que só lhe parece concreto na hora de cabalar votos. Então o esquerdista se acerca dos pobres, não preocupado com a situação deles, e sim com um único intuito: angariar votos para si e/ou sua corriola. Passadas as eleições, adeus trouxas, e até o próximo pleito!
Como o esquerdista não tem princípios, apenas interesses, nada mais fácil do que endireitá-lo. Dê-lhe um bom emprego. Não pode ser trabalho, isso que obriga o comum dos mortais a ganhar o pão com sangue, suor e lágrimas. Tem que ser um desses empregos que pagam bom salário e concede mais direitos que exige deveres. Sobretudo se for no poder público. Pode ser também na iniciativa privada. O importante é que o esquerdista se sinta aquinhoado com um significativo aumento de sua renda pessoal. Isso acontece quando ele é eleito ou nomeado para uma função pública ou assume cargo de chefia numa empresa particular. Imediatamente abaixa a guarda. Nem faz autocrítica. Simplesmente o cheiro do dinheiro, combinado com a função de poder, produz a imbatível alquimia capaz de virar a cabeça do mais retórico dos revolucionários. Bom salário, função de chefia, mordomias, eis os ingredientes para inebriar o esquerdista em seu itinerário rumo à direita envergonhada — a que age como tal mas não se assume. Logo, o esquerdista muda de amizades e caprichos. Troca a cachaça pelo vinho importado, a cerveja pelo uísque escocês, o apartamento pelo condomínio fechado, as rodas de bar pelas recepções e festas suntuosas. Se um companheiro dos velhos tempos o procura, ele despista, desconversa, delega o caso à secretária, e à boca pequena se queixa do “chato”. Agora todos os seus passos são movidos, com precisão cirúrgica, rumo à escalada do poder. Adora conviver com gente importante, empresários, ricaços, latifundiários. Delicia-se com seus agrados e presentes. Sua maior desgraça seria voltar ao que era, desprovido de afagos e salamaleques, cidadão comum em luta pela sobrevivência.
Adeus ideais, utopias, sonhos! Viva o pragmatismo, a política de resultados, a cooptação, as maracutaias operadas com esperteza (embora ocorram acidentes de percurso. Neste caso, o esquerdista conta com o pronto-socorro de seus pares: o silêncio obsequioso, o faz-de-conta de que nada houve, hoje foi você, amanhã pode ser eu...). Lembrei-me dessa caracterização porque, dias atrás, cruzei num evento com um antigo companheiro de movimentos populares, cúmplice na luta contra a ditadura. Perguntou se eu ainda mexia com essa “gente da periferia”. E pontificou: “Que burrice a sua largar o governo. Lá você poderia fazer muito mais por esse povo”. Tive vontade de rir diante daquele companheiro que, outrora, faria um Che Guevara sentir-se um pequeno-burguês, tamanho o seu aguerrido fervor revolucionário. Contive-me, para não ser indelicado com aquela figura ridícula, cabelos engomados, trajes finos, sapatos de calçar anjos. Apenas respondi: “Tornei-me reacionário, fiel aos meus antigos princípios. E prefiro correr o risco de errar com os pobres do que ter a pretensão de acertar sem eles.”
Frei Betto - Escritor, é autor de Calendário do poder (Rocco), entre outros livros
2 comentários:
Frei Betto, junto com Leonardo Boff são os únicos religiosos que costumo ouvir sem um pé atrás.
Li alguns livros de ambos e gosto da maioria das coisas que escrevem, quando não entram na questão da religiosidade, a qual estamos diametricalmente opostos.
Gostei do artigo, mas discordo de alguns pontos conceituais, onde, por exemplo, o frei define "ser de esquerda" como "optar pelos pobres".
Seria mais correto dizer que "ser franciscano" é "optar pelos pobres".
Sou de esquerda e ao mesmo tempo pertenço à burguesia, por ter nascido em família de classe média alta. O que posso fazer para me tornar de esquerda, conforme o frei defende? Me mudar para um conjugado no Vidigal, comprar um Fusquinha 1979 e renunciar ao bom salário que ganho com fruto do meu trabalho?
Estou alinhando ao que Norberto Bobbio considera como aberração: a desigualdade social.
Esquece Frei Betto que Engels era burguês, que Marx, até os 30 anos, também fazia parte da intelectualidade burguesa alemã, oriundo de família de classe média e que só depois de seu exílio na Inglaterra é que passou a sobreviver com extrema dificuldade, mas fora socorrido financeiramente por seu amigo Engels.
Um beijo e adorei os relatos de La Higuera!
Flávio,
Penso que a "opção pelos pobres" de que fala o Frei Betto é a de priorizar a questão dos menos favorecidos nas decisões políticas. Se vc nasceu (como eu também nasci) em uma família c/abastança e continua mantendo esse padrão, de fato não há urgência em se "solucionar" problemas de ordem pessoal (no âmbito social).
Qndo nós (os privilegiados)optamos por abraçar uma luta, uma causa, em prol da redução da desigualdade, estamos também, de certa forma, tentando "devolver" à sociedade um pouco do que recebemos por um golpe de sorte do destino.
Vc não precisa abrir mão do conforto e reduzir seu padrão de vida p/isso, mas temos que reconhecer q boa parte da vida q levamos hoje é por uma, digamos, "configuração dos astros" ou pelo que chamamos de acaso, ou teremos que admitir a hipótese de que quem não tem a mesma sorte, por algum motivo, não a merece. O próprio Bobbio (e Marx, e todos os outros) condena esta "aberração" porque sabe que se vivemos assim nesta "camada" e convivemos ao lado de quem nada tem, também somos resultado desta distribuição desigual.
Um dos grandes desafios do socialismo é também "educar" os privilegiados p/estar dispostos a dividir o que têm, nem que seja, doando seu tempo, formação e inteligência nesta tarefa. E isto vc já está fazendo, companheiro. ;)
Bjs,
Juliana
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