Primeiramente, desculpem-me por ficar tanto tempo sem atualizar o blog, tenho trabalhado muito, enfim... sem mais delongas. Quero falar um pouco sobre violência. Acho que estamos desenvolvendo uma espécie de resistência emocional coletiva para a violência e o descontrole social. É quase um anestésico, muito ainda em cima dos conceitos de virtualidade já debatidos aqui no blog, ou seja, as coisas reais estão sendo substituídas pelas virtuais e isso produz uma reação subjetiva de "rejeição à verdade" ou à aceitação dela. Aí, muitos conceitos sensatos, como os de proteção aos direitos humanos se perdem no descontrole quando as pessoas decidem que é hora de reagir.
No episódio em que Hugo Chávez avançou seu exército até a fronteira (no conflito entre Colômbia e Equador, quando do assassinato de um dos líderes das Farc pela primeira em território equatoriano), deixando os conservadores de cabelo em pé, seu ato apenas era o exercício de um direito soberano, o de controlar e proteger suas fronteiras. Este, aliás, é um dos elementos constitutivos do poder soberano sendo as fronteiras por sua vez, um elemento político constituído de poder. Além do controle das fronteiras, compõem os poderes soberanos: a autoridade interna, a autonomia política e a não-intervenção.
Cada país é autônomo e sua autodeterminação é garantida a partir da Carta de São Francisco (por ocasião da criação da ONU em junho de 45). Desde 1648, onde houve na Alemanha uma tentativa de monopólio absoluto do poder pela monarquia, após o Tratado que pôs fim à Guerra dos 30 anos, foi estabelecido o conceito de "estado-nação". Este possui três elementos principais: território, povo e língua. Aliás, língua, como poucos sabem, é uma questão legal, é lei. De certa forma, falar ou escrever errado não é ilegal, mas é um ato "fora da lei".
Liberté Igualité Fraternité
O exercício da soberania (popular) é conceituado desde 1789, durante a Revolução Francesa. Após cortarem a cabeça do rei e o povo clamar pela república, veio a redenção: "todo poder emana do povo e em seu nome será exercido". Isto é utilizado até hoje e foi reproduzido em nossa Constituição de 1988. Saímos do estado absoluto para a república, ou como prefere Bobbio, "do regime de cortar cabeças para o de contar cabeças". Do poder absoluto para o estado de direito. E, posteriormente, para a democracia (ainda em fase de testes, diga-se).
El poder significa la probabilidad de imponer la propria voluntad, dentro de una relación social, aun contra toda resistencia y cualquiera que sea el fundamento de esa probabilidad (conforme definição de Max Weber)
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, que esse ano faz 60 anos, na verdade começou a ser gestada em 1919 quando da formação da Sociedade das Nações, no âmbito do Tratado de Versailles, que transformou a guerra em um tema de interesse global. Portanto, o conflito recente Colômbia x Equador, foi levado à OEA porque qualquer conflito entre nações hoje, é do interesse de todos. Por isso também, na maioria dos governos, existem dois elementos permanentes: o Ministério do Exército (que faz a guerra) e o Ministério das Relações Exteriores (que faz a paz).
Na Carta da ONU, a palavra guerra aparece apenas uma vez, logo no preâmbulo: "nós, os povos das nações unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla. (...)". Historicamente, a guerra tinha uma conotação apenas de um "instrumento de resolução de conflitos" e a tortura por muito tempo foi tida como um "meio justificado de obtenção de provas". Ainda bem que as coisas mudaram bastante neste sentido...
A dignidade da pessoa humana é inviolável e toda autoridade pública
terá o dever de respeitá-la e protegê-la.
terá o dever de respeitá-la e protegê-la.
No filme O paciente inglês, a enfermeira vivida por Juliete Binoche é a única que reconhece o doente terminal como uma pessoa humana. Isso porque durante a guerra, judeus, ciganos e doentes terminais, não tinham direitos. A Constituição Alemã só reconhecia os direitos dos alemães (enquanto cidadãos). Para se ter uma idéia, em nossa constituição, a palavra brasileiro só é citada para especificar os parágrafos que tratam de nacionalidade, mas todos os seres em território brasileiro, tem seus direitos humanos e de cidadãos reconhecidos (pelo menos na teoria).
"Todos nascem iguais" é o que diz a carta de 48, mas só a partir da reforma em 2005, surge o conceito da "responsabilidade de proteger". É dever humanitário garantir abrigo aos refugiados, por exemplo. E isso é um conceito à ser observado mundialmente, o que considero um avanço gigantesco para a sociedade em que vivemos e, porque não, para o futuro da humanidade.
Segundo Hanna Arendt "(...) onde os homens aspiram a ser soberanos, como indivíduos ou como grupo organizado, devem se submeter à opressão da vontade, seja esta a vontade individual com a qual obrigo a mim mesmo, seja a vontade geral de um grupo organizado. Se os homens desejam ser livres, é precisamente à soberania que devem renunciar". O sentido de liberdade Arendtiano aqui, não é o que muitos pensam, não tem um viés tão revolucionário, ela mesma afirma mais a frente que o próprio "sentido da política é a liberdade". Mesmo o dificílimo Kant em seu texto "A paz perpétua" (que não é a dos cemitérios), diz que todos os países devem ser republicanos para alcançarem a paz. A ordem internacional deveria ser regida por uma confederação de estados livres. O cosmos no conceito kantiano, é inspirado na polis grega.
No government should be able to create a prison where it can be exercise unchecked absolute power over those within the prision´s walls (Human Rights Watch World Report 2004).
Será que os defensores de Guantánamo conhecem isso? A base é uma evidência do limite da proteção internacional dos direitos humanos quando o discurso da segurança de Estado se torna prioridade absoluta. O campo iniciou seu funcionamento em 11 de janeiro de 2002 com aproximadamente 700 pessoas de várias partes do mundo, dentre elas três adolescentes entre 13 e 18 anos. Até o momento, não foi informado: a identidade dos prisioneiros, a alegação contra eles, onde serão julgados.. Os julgamentos que estão sendo realizados, são feitos por uma Comissão Militar criada pelo presidente Bush em 2001. Vivo num mundo em que isso é aceito, permitido e não questionado pela maior parte do planeta... é difícil compreender isso às vezes...
(...) Se oriente, rapaz
Pela constatação de que a aranha
Vive do que tece
Vê se não se esquece
Pela simples razão de que tudo merece
Consideração
Considere, rapaz (...)
Gilberto Gil
Pela constatação de que a aranha
Vive do que tece
Vê se não se esquece
Pela simples razão de que tudo merece
Consideração
Considere, rapaz (...)
Gilberto Gil
O sentido da palavra dignidade é merecimento, respeito, consideração. Essa definição foi melhor explicada para mim, esses dias, pelo Prof. Guilherme Assis Almeida: "Siderar é olhar para as estrelas. Milenarmente, olhamos para elas para entender a existência ou prever o futuro. Quando considero, respeito as peculiaridades de cada ser. O antônimo é desiderar, ou desejar ao extremo, sem limites."
No caso Isabella Nardoni por exemplo, só houve o desejo de se livrar de um problema, não houve consideração. E, no entanto, considerar é uma necessidade humana, por isso o fato chocou tanto, a despeito da reação da sociedade e da imprensa terem me chocado mais. Sobre isso aliás, leiam: http://provocadoress.blogspot.com/2008/04/ensinando-lixar.html de Ana Paula Bessa e http://prenhederazao.blogspot.com/2008/04/o-acaso-particular.html do Flávio Costa que definem bem o que vem acontecendo e resume muito do que eu mesma penso sobre o assunto. Triste do povo que acredita que linchar suspeitos em praça pública é o exercício de um direito ou um ato de "justiça" (putz)...
Outro filósofo, Joan Galtung define: "violência é tudo que impede ou impossibilita o processo de desenvolvimento", ou seja, quando pais e mães super protegem seus filhos não estão criando seres livres, muito menos dando-lhes possibilidade de se desenvolverem.
Uma inteligência distribuída por toda a parte, incessantemente valorizada e coordenada em tempo real, resulta em mobilização efetiva de competências. (Pierre Lévy)
O uso internacional da força física ou do poder, real ou potencial, contra si próprio, contra outras pessoas ou contra um grupo ou uma comunidade é praticado mundialmente ainda hoje sem a observação dos critérios recomendados pela Carta da ONU, ainda que muito se diga a respeito, cada cultura acaba fazendo de acordo com sua vontade. A vantagem é que hoje é difícil isso acontecer sem que hajam reações literalmente imediatas de cada canto do planeta, a internet aí é um grande "observatório". Mesmo com fatos como a base de Guantánamo ou o assassinato do líder das Farc ocorrendo embaixo de nossos narizes sem que as pessoas se dêem conta do tipo de atrocidade que é cometido, da violação de direitos, da ingerência ao país alheio, creio que Lévy acerta quando afima no resultado final, ainda podemos nos salvar nos utilizando da informação (responsável), da educação e do conhecimento. Como aponta Amartya Sen, prêmio nobel de economia de 1998: "o desenvolvimento é um compromisso muito sério com as possibilidades de liberdade". O desenvolvimento para ela, deve ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam. Ela contrasta com visões mais restritas, como as que identificam desenvolvimento com crescimento do PIB, aumento da renda per capita, industrialização, avanço tecnológico ou modernização (obviamente importantíssimas como meios de expandir as liberdades). Mas as liberdades definidas por ela são essencialmente determinadas por saúde, educação e direitos civis. Então, ver o desenvolvimento como expansão de liberdades substantivas dirige a atenção para os fins que o tornam importante, em vez de restringi-lo a alguns dos meios que desempenham um papel relevante no processo. Possivelmente, isso resolveria boa parte dos nossos problemas. Darcy Ribeiro, Paulo Freire e muitos outros educadores já sabiam disso há tempos só que não é interessante ainda apontarmos para isso. Pelo menos é o que pensam nossos representantes. Infelizmente.