Sempre tive a sensação de que nasci na época errada. De tanto conversar com meu avô sobre as histórias do Rio antigo que ele adorava contar, essa sensação foi aumentando, aumentando... a ponto de eu estar sempre, de alguma forma, com saudade de coisas que não vivi.. Eu queria ter vivido no Rio da Kananga do Japão, do Cassino da Urca, do Madame Satã, dos tangos e boleros dançados na Estudantina e na Lapa, dos jogos de sinuca ao som de sambas e chorinho, num tempo em que era elegante sair de chapéu, fumar cigarrilhas e conversar sobre arte, música, poesia... Um dos filmes que mais me emocionaram ultimamente foi o que conta a história do Noel Rosa, lindo, lindo.. assim como o que relata a vida do mestre Cartola.
Meu avô era um homem elegante, educadíssimo e muito culto. Ele era advogado e funcionário público e se aposentou em Brasília, mas era o típico carioca. Boa-praça. Tinha por hábito estar sempre muito bem penteado e perfumado mesmo quando estava em casa. Falava com altivez e olhava as pessoas nos olhos, com firmeza e ternura. Desde que ele se foi, sinto um arrependimento enorme por não ter feito um registro de suas histórias. A memória dele era incrível e ele lembrava com detalhes fatos políticos e da vida cultural do Rio em diversas épocas, incluindo claro, o período dos anos de chumbo. No dia da festa dos 50 anos de casamento com minha vó, ele recitou um poema de escola que tinha feito para ela quando os dois se conheceram e que estava num surrado caderno que ele tinha guardado por todos aqueles anos(!) e depois, outro poema que ele tinha feito para as bodas. Para mim ele era o modelo do que eram os homens do Rio antigo (ele nasceu na década de 20), romântico, respeitador, generoso e de bem com a vida.
Meu avô me ensinou coisas que não encontrei reflexo em nenhuma outra pessoa. Uma das coisas que devo a ele (além de ser flamenguista) é minha paixão pelo samba de raiz e o respeito e admiração que tenho pela comunidade do Morro da Mangueira. Ele tinha conhecido o Cartola e contava sempre muitas histórias sobre a Estação Primeira, sobre os dias de glória da verde-e-rosa e sobre como era importante valorizar as comunidades das favelas do Rio de Janeiro. Vovô lembrava do episódio em que Lacerda apoiou a criação da Cidade de Deus, numa tentativa de exterminar as favelas que estavam se formando próximas à zona sul do Rio. Mas ele sempre disse que o "malandro" carioca do qual muitas músicas se referem não tinha nada a ver com o bandido do crime organizado que existe hoje e que isso tinha acontecido não por culpa da comunidade dos morros, mas sim de políticos, empresários e autoridades que sustentam essa roda-viva do tráfico que tomou conta do Rio. Mesmo quando morava com ele em Ipanema e nos assutávamos com os tiroteios vindos da favela do Pavãozinho (ele tinha medo que eu ficasse na varanda vendo o mar por causa disso), ele nunca em nenhum momento me disse que eu devia me afastar daquelas pessoas e por isso, acabei fazendo muitos amigos, no Vidigal, na Rocinha e na Mangueira. Amigos que conheci na escola, na praia, na rua, andando de skate... Meu avô me ensinou a dissociar as coisas que as pessoas associam de forma preconceituosa. Como a mania que as pessoas têm de dizer que o carioca gosta de "passar as pessoas pra trás", que o Goiano é "burro" ou que o baiano é "preguiçoso". Coisas que só servem para depreciar os brasileiros, nossa cultura, nossa força.
"Chegou, a Mangueira chegou...". Foi sob o som do hino da escola de samba que o corpo do cantor Jamelão foi enterrado hoje no Cemitério do Caju, na Zona Portuária do Rio. Vi rapidamente hoje pela manhã na TV o cortejo passando pela Marquês de Sapucaí ao som arrepiante da bateria da Mangueira e depois as pessoas cantando o hino durante o enterro. O cantor Zeca Pagodinho lembrou a todos que "em enterro de sambista não tem chororô"... mas foi difícil até pra ele conter a emoção. O engraçado Jamelão, famoso por seu mau-humor e que se recusava a ser chamado de "puxador" de samba, carregava consigo um símbolo de tradição de um Rio que está desaparecendo aos poucos. O Rio que meu avô viu e que provavelmente não veremos mais. Só quem já andou pelas ruas do Rio de coração aberto, observando sua arquitetura e sua gente, pode entender o que isso significa.
O governador Sérgio Cabral decretou luto de três dias pela morte do cantor. "Jamelão, além do maior intérprete de sambas-enredo e sambas-canção do Brasil, era o grande símbolo da garra mangueirense", lembrou Cabral. Pôlemico, mas sincero em suas declarações, José Bispo Clementino dos Santos, seu nome de batismo, conviveu ainda menino com os fundadores e os primeiros componentes da escola e logo estava na bateria da verde-e-rosa. Daí acabou aprendendo cavaquinho e passou a cantar em gafieiras. Nos anos 50, passou a atuar como intérprete de samba-enredo da Mangueira e tornou-se referência no gênero. Mesmo com a fama de rabugento, era uma das pessoas mais queridas da cidade. Acho que o vovô vai ficar feliz com a roda de samba que está se formando no céu.
Valeu Jamelão!
P.S.: No link abaixo, no blog do Flávio Costa, tem um episódio engraçado do Jamelão e um vídeo que vale a pena ser visto: http://prenhederazao.blogspot.com/2008/06/adeus.html
"Se não estás prevenido ante os meios de comunicação, te farão amar o opressor e odiar o oprimido" Malcom X
domingo, 15 de junho de 2008
Jamelão foi encontrar seus amigos numa roda de samba no céu
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