"Se não estás prevenido ante os meios de comunicação, te farão amar o opressor e odiar o oprimido" Malcom X

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

CASO LINA & DILMA

Falando de jornalismo, comunicação e liberdade, posto aqui o texto de Maurício Caleiro, do Observatório da Imprensa, que avalia a cobertura e a conduta jornalística de um dos maiores jornais do país, a Folha de SP.

Ontem, conversando com Sérgio Murilo, presidente da Fenaj, atentei para um aspecto da questão "Diploma x STF" para o qual ainda não tinha prestado tanta atenção. À despeito de ainda achar que o diploma não é o tema mais importante a ser discutido pela categoria que, dentre outras coisas, se prepara para uma difícil Conferência Nacional de Comunicação em dezembro, reconheço agora, a partir da fala dele ontem no auditório do Unicesp e da leitura de textos como esse do Maurício que postei abaixo, que a exigência do diploma pode ser a única garantia possível de qualidade, isenção e credibilidade na construção de um texto jornalístico (que é de fato muito diferente de um texto de opinião).

O texto mostra como o diploma, caso da maioria dos jornalistas da Folha, não garantiu que esses observassem o mínimo que é ensinado nos bancos acadêmicos: apuração antes da publicação, não omissão de detalhes importantes para a compreensão dos fatos, dentre outros. Vale como uma aula de anti-jornalismo. Mas, concordo que, sem diploma, pode ficar bem pior.




Folha, omissão e manipulação


Por Maurício Caleiro em 25/8/2009


Três episódios de extrema gravidade, analisados em detalhes neste Observatório, marcaram a conduta do jornal Folha de S.Paulo este ano: o emprego do neologismo "ditabranda" em editorial, para se referir ao regime militar que vigorou de 1964 a 1989; o ataque verbal do diretor de Redação Otavio Frias Filho aos professores Maria Victoria Benevides e Fábio Konder Comparato; e, pior, a utilização de ficha policial falsa da ministra da Casa Civil e pré-candidata do PT à presidência, Dilma Rousseff, em matéria sobre um sequestro que nunca ocorreu – resultando no que a professora de Jornalismo Sylvia Moretzsohn, neste mesmo OI, classificou como "um dos casos mais graves da história recente do nosso jornalismo – ou, pelo menos, um dos casos mais graves tornados públicos".

Nascido como denúncia nas próprias páginas da Folha, o "caso Lina Vieira" talvez mereça figurar nessa lista que documenta a decadência de um dos órgãos de imprensa que um dia encarnou as esperanças de aprimoramento das posturas jornalísticas no país. Tal dúbia glória deve-se não apenas aos detalhes do caso, que pouco a pouco vão sendo revelados e suscitam suspeitas de que se trate de uma grande armação, mas, de forma indubitável, à cobertura que o jornal vem dispensando ao assunto.

A edição da Folha de terça-feira (19/8), que abordou o depoimento da ex-secretária da Receita Federal à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, foi particularmente questionável, por apresentar omissões gritantes e por adotar, uma vez mais, uma série de procedimentos jornalísticos inaceitáveis num órgão que se pretende pluralista.

"Não me senti pressionada"

"Não é o primeiro episódio na história recente do país em que um clima de escândalo sobe a uma temperatura máxima, alimentado por fatos que são o centro das atenções políticas por semanas até que sumam no ar como fumaça. Nesse caso, depois do depoimento de Lina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, anteontem, e de inúmeros indícios apontados por apoiadores e detratores, a pergunta que vem à cabeça dos acompanhantes mais atentos da cena política é: qual é mesmo o crime?" – perguntou, no jornal Valor, a editora de opinião Maria Inês Nassif.

É precisamente o que ocorre não apenas com o "caso Lina", mas com a cobertura a ele dispensada: atingiram um ponto tal que, antes de mais nada, convém lembrar qual é exatamente a acusação que paira sobre Dilma Rousseff. Ela teria se encontrado com a ex-secretária da Receita e pedido agilidade em inquérito contra Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney, este então sob a ameaça de ser deposto pela Comissão de Ética da presidência do Senado. Segundo declarara inicialmente, Lina interpretou o pedido como uma senha para arquivar o processo. Essa era a acusação inicial.

Porém, em seu depoimento ao Senado, a ex-secretária, não obstante ter confirmado o encontro – sem, no entanto, apresentar qualquer prova material ou indício incontestável de que este ocorrera –, negou ter interpretado o pedido de agilidade alegadamente feito por Dilma como senha para encerrar o caso: "Eu entendi, das palavras da ministra, que resolvesse logo as pendências, que desse celeridade ao processo, não me senti pressionada pela ministra"; e "a ministra disse para agilizar a fiscalização do procedimento contra o filho de Sarney, mas, de forma alguma, o pedido foi para não investigar o filho de Sarney. Foi apenas para dar agilidade", declarou ela.

Mas o leitor da Folha de S.Paulo no dia seguinte ao depoimento simplesmente não teve acesso a essa declaração. Todos os textos relativos ao caso – um editorial, uma coluna de opinião e a matéria jornalística em si – são apresentados sem levar em conta esse momento-chave do depoimento.

Omissão e distorções

Os problemas começam já no editorial, intitulado "Persiste a dúvida", que produz uma pérola de humor involuntário ao afirmar contraditoriamente que "o depoimento da ex-secretária da Receita, ontem no Senado, manteve todas peças no tabuleiro. Lina Vieira não trouxe elementos que provassem o encontro reservado que alega ter mantido com Dilma Rousseff, para tratar de uma investigação fiscal contra familiares de José Sarney".

O texto não deixa de trazer, no entanto, embutido em sua argumentação, as consequências dos desdobramentos do dia anterior e, significantemente, a impossibilidade de encaminhar a acusação pelo caminho anteriormente adotado – de alegada interferência de Dilma para ajudar Sarney: "A prática de realizar encontros reservados de governo não pode ser condenada por princípio (...). Pode-se argumentar, do mesmo modo, que um pedido feito por um ministro para `agilizar´ – desde que o sentido implícito não seja o de `encerrar´ – certo processo não configuraria falta grave". Então, em que resultaria o problema? Segundo o editorialista – em outro ato falho revelador – na "acusação, esta politicamente grave, de [Dilma] ter mentido".

Na outrora nobre página A2, a coluna de Fernando Rodrigues afirma que "quem acusa é Lina Vieira, integrante dos quadros do próprio governo. Não se trata de alguém da oposição, um de fora". Do ponto de vista jornalístico, há um problema gravíssimo nesse "argumento": ele não informa o leitor que o tal "quadro" fora demitido de uma alta função – a mais alta que alcançara em sua carreira – e que dera demonstrações públicas de contrariedade pela demissão. Omissão ainda mais grave, deixa de noticiar que Lina fora demitida alegadamente por ninguém menos do que a pessoa que ela agora acusa, Dilma Rousseff. Ou seja, a argumentação de Rodrigues depende da sonegação de uma informação essencial, que explicitaria motivação para uma vingança de Lina contra Dilma.

"Ou mentiu à Folha ou mentiu aqui"

O colunista também não foi capaz de – ou não quis – apurar outra suspeita de primeira ordem, contrária à tese que desenvolve na coluna, e que viria a público na mesma quarta-feira, sendo confirmada no dia seguinte no blog Entrelinhas, de Luiz Antonio Magalhães: a revelação de que o marido de Lina, Alexandre Firmino de Melo Filho, fora ministro da Integração Nacional durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso por quase um ano e, como sócio da agência de marketing político dois.a, tem ligações de longa data com a prefeita de Natal, Wilma de Faria (PV-RN) e com o senador Agripino Maia (DEM-RN), um dos líderes da ofensiva denuncista da oposição contra José Sarney (PMDB-AP) e, agora, contra Dilma. Convenhamos, para quem convive há tempos com o poder brasiliense e já foi um dos melhores repórteres investigativos do país, é uma sequência e tanto de "barrigas" – que põem por terra sua alegação de isenção funcional de Lina.

E há, por fim, o que deveria ser a matéria jornalística relativa ao depoimento na CCJ, intitulada "Lina vê `pedido descabido´ de Dilma e detalha reunião" e assinada por três repórteres. A única concessão que fazem é reconhecer que "a ex-secretária não levou provas nem forneceu a data da audiência". O resto da matéria reproduz falas de impacto de Lina – como "Não mudo a verdade no grito. Nem preciso de agenda para dizer a verdade. A mentira não faz parte de minha biografia" –, relata detidamente a atuação da bancada governista (mas se omite em relação à da oposição) e comete o ato falho de "entregar" que Lina reconhece que, no depoimento que dera ao jornal em 9/8, "apenas confirmou informações que a Folha apresentou a ela".

Utiliza-se, ainda, do pior truque empregado pelo jornal na cobertura: publica uma declaração que Lina dera anteriormente como se se tratasse de parte de seu depoimento ao Senado: "Na minha interpretação, o pedido de agilizar a fiscalização do filho do presidente Sarney foi para encerrar a fiscalização." Ou seja, exatamente o contrário do que ela afirmou aos senadores. Na CCJ, essa mesma contradição entre o que ela havia dito ao jornal antes e o que declarou aos parlamentares foi sublinhada pela senadora Ideli Salvatti (PT-SC), que interveio: "A senhora já disse a vários senadores que não entendeu [a ordem de Dilma] como pressão. Ou a senhora mentiu para a Folha ou a senhora mentiu aqui."

Acusação sem bases

Porém, esse é um caso em que, desde o início, foi invertido o princípio básico do Direito segundo o qual o ônus da prova cabe ao acusador. Mesmo Lina tendo sido incapaz, em cinco horas de depoimento à CCJ, de produzir uma prova sequer de que o encontro ocorrera, a personagem suspeita de mentir, é, para a Folha, Dilma. Não só o já citado editorial explicita isso, mas o título da coluna de Fernando Rodrigues faz ilusão à ministra: "A mentira como imagem". O colunista Elio Gaspari, em outra ocasião, vai mais longe e, proclama, baseado em não se sabe em quê, que "a ministra Dilma Rousseff tem uma relação agreste com a verdade". Se o caro leitor entendeu o que o historiador revisionista quis dizer, por favor, nos informe.

O governo, por seu lado, nega de forma peremptória a ocorrência do encontro. Não só o de ordinário recluso secretário de Comunicação Social, Franklin Martins, deixou-se entrevistar por jornalistas em Rio Branco (AC) para renegá-lo, uma vez mais, mas o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou a liturgia do cargo e desafiou Lina a provar o contrário. Para Ricardo Kotscho, que precedeu Martins na função, o maior erro cometido pelo governo até agora teria sido "entrar na da mídia" e sair a público para desmentir o encontro – e não só porque, como já citado, caberia aos acusadores provar que ele de fato ocorreu, mas porque a atitude defensiva do governo lançou suspeitas e reinflamou o debate.

Luis Nassif, no entanto, vê o caso por outro ângulo e recoloca uma questão essencial: "E se o encontro não ocorreu? Dilma deveria endossar metade da mentira [de Lina] para desqualificar a segunda metade, de que teria feito pedidos indevidos à ex-secretária?" Figuras-chave do governo se exporiam dessa maneira e viriam a público asseverar a inexistência do encontro e desafiar Lina a provar sua ocorrência se não tivessem a certeza de que ele não ocorreu? Não se sabe a resposta para estas perguntas, mas é importante registrar que o leitor da Folha não as encontra no jornal, a não ser na forma de acusação afirmativa e unilateral sem bases que a comprovem.

Tratamento diferenciado

Como se vê, o "caso Lina" tem ramificações várias e é mais complexo do que à primeira vista aparenta. Outra questão essencial que permanece sem resposta é por que o ministro da Fazenda, Guido Mantega, nomeou para secretária da Receita Federal – um cargo de confiança e estratégico, inclusive do ponto de vista da segurança institucional – a esposa de um ex-ministro de FHC e político ligado ao DEM, contra o qual a Procuradoria da União move ação por suposto desvio na Sudam, cujo rombo total chega a R$2 bilhões?

Uma consulta ao banco de dados da Folha de S.Paulo revela que Lina Vieira recebeu, durante sua gestão de menos de um ano à frente da Receita Federal – e notadamente logo após ser demitida –, tratamento diferenciado por parte do jornal em relação ao que o diário comumente dispensa ao segundo escalão do atual governo: criou-se a imagem de uma secretária eficiente, diligente na defesa de interesses corporativos e disposta a combater, como nunca antes neste país, os grandes sonegadores.

Interrogar a razão de tal tratamento face às práticas jornalísticas questionáveis que marcam a cobertura que a Folha faz do "caso Lina" pode vir a ser uma linha de investigação interessante sobre as ligações entre o jornal, o poder e a oposição.


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