"Se não estás prevenido ante os meios de comunicação, te farão amar o opressor e odiar o oprimido" Malcom X

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Solidariedade

Bestificada. É como me sinto. E frustrada. A frustação é por não ter tido o insight de filmar, fotografar ou até entrevistar os protagonistas da cena que testemunhei hoje.

A comercial da 410/411 sul em Brasília é uma loucura todos os dias no horário de almoço. Pudera, três ou quatro escolas próximas e alguns restaurantes. Senha para congestionamento e horas procurando uma vaga. Tinha acabado de encontrar uma e mal notei - na ansiedade de parar o carro em meio ao calor que vem fazendo esses dias - que os carros que vinham na contramão, avançavam na minha pista. Só quando estacionei, percebi o motivo e, agora, só posso agradecer por eu e o Igor termos presenciado a cena que se seguiu.

Essa, aliás, é a única coisa que posso fazer para eternizar o acontecimento, tentar descrevê-lo aqui. Mas esse cara merecia uma foto. Nos jornais.


Em Brasília, muitos carroceiros usam tração humana


O motivo do congestionamento que já dobrava o balão em frente à Escola Parque 210 e se expandia nos dois sentidos depois dele (sul e norte), era um carroceiro que provavelmente em função do peso, havia deixado sua carroça desequilibrar e tombar meio de lado, de um jeito que ele não conseguia movê-la. Enquanto o homem tentava de todas as formas levantar ou mover a carroça, a fila de carros que se formava atrás dele, buzinava. Alguns passavam apressados por ele, avançando pela pista contrária onde, alguns metros depois, há um semáforo, para aumentar mais ainda a fila que se formava de motoristas impacientes e aborrecidos com o indesejado contratempo. 

No momento em que olhei ele já estava há algum tempo fazendo o esforço de tirá-la do lugar sem conseguir mover um centímetro até que, no mesmo instante, percebi um homem literalmente correndo rua acima. Ele estava em um dos carros da fila que passava pela carroça e ao passar por ele e perceber o problema, parou o carro mais embaixo, depois do semáforo - até porque a fila dupla que se forma nesse horário na comercial não o deixou parar mais perto - e subiu correndo para ajudar o carroceiro. 

Essa foi a primeira surpresa, porque ele poderia simplesmente ter passado e seguido em frente, como outros que o antecederam. Mas o rapaz bem vestido, com camisa pólo, relógio e sapato bacanas, saiu de um sedan prata (não sei de que tipo, mas um do tipo "carrão" que na cidade do "classe média way of life" faz o maior sucesso) e correu para acudir o carroceiro que já sem camisa suava para, ao menos, tirar a carroça do meio da rua.

O anônimo herói poderia aí ter se limitado a ajudar o carroceiro a empurrar a carroça para o canto e, com isso, já teria feito muito pelo carroceiro e pelos carros que iam se acumulando na fila, cada vez maior atrás dele (para quem mora em Brasília é fácil imaginar o estrago que um episódio como esse pode causar no trânsito). Mas ele fez mais e foi isso que eu, Igor e não sei quantas pessoas que puderam perceber o gesto, assistimos boquiabertos.

Eles devem ter levado cerca de 15 a 20 minutos de esforço porque não só ele tentava ajudar o carroceiro a movimentar a carroça como procurava reequilibrá-la no eixo para que o carroceiro pudesse continuar seu caminho. Algumas coisas caíram da carroça quando ela tombou e essas o rapaz pegou primeiro, antes de ajudar no trabalho de força. Foi pegando aquele monte de calotas, ferro velho e colocando novamente em cima da carroça como coisas de grande valor, numa demonstração incrível de respeito pelo trabalho do homem que tentava ajudar. Depois dava instruções para que o carroceiro se posicionasse em frente aos puxadores da carroça em linha reta enquanto puxava o lado contrário, se inclinando totalmente, quase encostando o chão com o corpo, para que a carroça se virasse novamente (a roda que sofria a maior pressão estava quase quebrando, não sei como isso não aconteceu) e o carroceiro pudesse finalmente colocá-la em linha reta de novo. Ainda gastou um tempo depois, comentando alguma coisa sobre a forma de arrumar as coisas em cima e distribuir melhor o peso.


O mais surreal é que os dois homens eram personagens absolutamente opostos - um sujo e maltrapilho, o outro quase um  dos que classificamos por aí de "mauricinho" - juntos numa mesma cena de solidariedade e compaixão. Foi, no mínimo, uma cena muito, muito rara de se ver. E, para mim, do tipo que sugere uma série de reflexões. Sobre preconceito, indiferença, sobre como as pessoas podem ser invisíveis. Ou não.

Acho que, mais do que solidariedade, a cena que vimos hoje, ilustra um tipo de "grandeza" muito rara nos dias de hoje. O anônimo, depois que terminou sua tarefa, simplesmente deu um tapinha no ombro do carroceiro, fez um positivo com o polegar e desceu correndo de volta ao seu carro, sem se importar se alguém o estava observando. O carroceiro, acho que era o mais incrédulo, ficou sorrindo um sorriso sem dentes, olhando para o rapaz "chique" que descia a rua, provavelmente imaginando de que lugar ele havia saído.

Não sei quantas pessoas notaram, além de mim e do Igor, que com seus 9 anos, também ficou surpreso com o que viu. Mas sei que algo tão incomum não deveria passar despercebido. Espero que gestos como esse se multipliquem aos milhares. O mundo precisa muito de cenas assim.

6 comentários:

Tatiana Soares disse...

Ju, que texto, que cena!
Enquanto lia imaginava o que mais parece cena de filme. Onde alguém pensou muito para escrever. Mas, infelizmente o que você narra é a cena do cotidiano tão comum, que nossos olhos não querem ver. No entanto foram seus olhos. Olhos de jornalista que tudo vê. Pode ter a certeza que a sensibilidade de enxergar tamanho gesto foi sua e do Igor. As pessoas em Brasília estão ocupadas por demais, apressadas por demais para se ater a esse fato. Parabéns pelo texto e pela sensibilidade em expressar a solidariedade que pouco se vê nesse mundo tão apressado! Bjinhos...

Juliana Medeiros disse...

Tati, assistimos tudo de dentro do carro. Assim que estacionei a cena já estava acontecendo e foi, literalmente, paralisante. Tanto que não conseguimos nos mover, ficamos assistindo tudo pela janela. Como um filme mesmo, uma cena de cinema. Se nossa pressa não nos deixa às vezes sequer perceber uma cena dessas, imagine parar para fazer o que o tal anônimo fez. Foi como um "intervalo" no tempo, como se o tempo parasse. Na verdade, foi uma aula.
Bjo e obrigada pela visita! :)

Henrique Miranda disse...

Juliana,
Obrigado por iluminar meu dia com esse post que resgata, teimosamente, a minha fé no ser humano, independente dos aleijumes da luta de classes. Beijão solidário e feliz.

Everson Fernandes. disse...

Sensacional. Obrigado por compartilhar. Me faz parecer menos ingênuo, quando digo que ainda tenho fé no ser humano.

Juliana Medeiros disse...

Everson, se perdermos a fé na capacidade humana de fazer o bem, melhor desistirmos de viver. As duas coisas são quase sinônimas. Talvez por isso haja tanto morto-vivo por aí. Abs.

Juliana Medeiros disse...

Henrique! Me desculpe por só responder agora.. eu recebo os comentários no meu e-mail e não vi esse "perdido" em meio à dezenas de outras coisas.. Obrigada por seguir o blog e pelo comentário. Até hoje essa cena é um alerta para mim: "vale a pena Juliana, vale a pena!.." =) bjão!

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