Acompanho desde o último domingo a delegação brasileira - composta pelos deputados Brizola Neto e Protógenes Queiroz, além de alguns jornalistas e ativistas - que viajou com destino à Líbia. O objetivo seria atender a um convite do comitê independente que atua junto ao governo líbio, seguindo o já ocorrido com delegações de outros países, para observar a situação real da guerra e compor um relatório que se juntará a outros, nas negociações de paz que vêm ocorrendo desde o início dos conflitos.
A saída do Brasil, com destino ao Norte da África, iniciou-se em Paris, que coincidentemente foi o primeiro dentre os aliados a bombardear a Líbia em março deste ano. Em seguida, o grupo seguiu viagem para a Tunísia, país que passou recentemente por uma revolução popular que levou à renúncia do presidente Zine el Abidine Ben Ali.
Cruzamento de Túnis
Ao chegarmos à Tunísia a delegação foi informada de que a OTAN tinha iniciado uma série de pesados ataques na estrada que liga as fronteiras da Tunísia e da Líbia, caminho que vem sendo utilizado como a principal via de abastecimento do país africano. Desde então, são sucessivas as nossas tentativas de seguir viagem, ainda sem sucesso.
"Sabe, eles tem muito dinheiro"
Ainda no aeroporto em Túnis, conversei com o responsável pelo balcão de informações do setor de desembarque - que pediu para não ser identificado - e este, um tunisiano que contou ter participado ativamente dos manifestos que sacudiram a Tunísia em janeiro, afirmou que os conflitos na Líbia não são iguais aos do seu país, com imensas desigualdades sociais. Ele disse não entender o motivo da revolta na Líbia, já que para ele a maioria dos líbios "tem tudo, não lhes falta nada sabe, eles tem muito dinheiro" fornecendo também outros detalhes que começavam a delinear o que encontraríamos nos últimos dias.
Mulheres vestem-se como querem na Tunísia |
Já no aeroporto, pudemos notar que a Tunísia - o primeiro dentre os países árabes a abolir o uso do véu - alcançou avanços ainda maiores entre os direitos das mulheres. Temos visto várias vestidas de formas diferentes, com ou sem véu e até com saias ou shorts, que fariam, não fosse outros aspectos, pensarmos que estamos em qualquer país ocidental. Os idiomas predominantes são o árabe e o francês, mas a presença massiva de tunisianos que também dominam o inglês dá o panorama de integração com a Europa perceptíveis nas influências da cultura local, nas roupas, construções ou mesmo na comida. O apimentado típico dos pratos tunisianos, intenso até para os padrões brasileiros, é de influência francesa.
Nota de repúdio aos ataques
A delegação divulgou, já na terça-feira uma nota de repúdio aos ataques da OTAN e desde então temos observado indícios de que a "verdade" não é algo fácil de ser encontrado em um conflito como esse. Há uma certa rejeição dos tunisianos à figura de Muammar Gaddafi, pela associação imediata com a figura do presidente deposto da Tunísia, mas é consenso que os líbios são vistos como uma elite que vem ao país para consumo. Além disso, os tunisianos reconhecem a prosperidade líbia e chegam a admitir que gostariam dos mesmos benefícios em seu país, como ausência de impostos, programa de moradia que atinge quase 100% da população, modernas escolas e hospitais públicos e gratuitos por toda a vida.
Nos últimos dias em busca de informações na Tunísia, foi possível identificar aspectos interessantes, até então desconhecidos para a maioria de nós, um deles é o fato de que mais de um milhão de líbios vivem na Tunísia e outros tantos circulam livremente entre os dois países, ao ponto de ser fácil a identificação das placas dos automóveis líbios, sempre os mais caros. A maior parte da elite Líbia tem casas de veraneio em Túnis, capital que é também um dos grandes centros turísticos da costa mediterrãnea. Um exemplo marcante é o bairro de Sidi-Bu-Saidi, cujo aluguel de casas - predominantemente brancas e azuis e com vista para o mar Mediterrâneo - custam em torno de 1.000 euros por mês. A maioria delas, alugadas ou próprias, é ocupada por líbios que vem ao país, principalmente na época do Ramadã, em busca de descanso.
Sidi-Bu-Saidi, em Túnis |
Trânsito caótico da Tunísia |
Jogadores brasileiros na Tunísia
No hotel, encontramos um jogador de futebol brasileiro, que vive em Túnis há alguns meses, Vitor Sony, 23 anos. Ele joga pelo Afrikan e estava acompanhado do jogador Clayton Menezes, 37, celebridade na Tunísia por ter defendido a camisa do país por duas vezes em Copas do Mundo. Ele encerrou a carreira de jogador e agora empresaria novos jogadores como Vitor.
Clayton não soube dizer muito sobre o que acontece no país vizinho, mas afirmou que a liberdade conquistada pelo povo tunisiano nos últimos meses tem "deixado algumas pessoas loucas". Ele disse que mora no país desde 1995 e que tem observado uma melhoria geral na postura das pessoas, com menos medo de expressarem suas ideias após a queda de Ben Ali mas, ao mesmo tempo, disse esperar que após as eleições a dinâmica de funcionamento das cidades se normalize. Segundo ele, "desde a revolução, nada mais funcionou direito por aqui".
Já o meia esquerda Vitor, que mora no hotel com a noiva também brasileira, disse que sente muita saudade da família, mas que vir para Túnis valeu a pena porque "aqui você recebe". O jogador que já passou pelo Santo André paulista afirmou que no Brasil "um mês dura três" para os clubes, ou até mais como no caso dele, que chegou a ficar até cinco meses sem receber. Por isso, quando convidados por olheiros, a maioria dos jogadores em início de carreira como ele, aceita imediatamente a proposta de sair do país.
Ponte destruída próxima à fronteira de Tripoli |
Há três dias um navio vindo do Qatar - país que compõe os aliados da OTAN - tentou cruzar a costa líbia com armamento pesado a ser distribuído em Benghazi para os rebeldes, mas sua passagem foi negada pelas autoridades portuárias tunisianas. A rede de TV AlJazeera com sua espetacular estrutura para produção jornalística, tem ocupado quase 70% de sua programação na cobertura dos conflitos, em especial do ponto de vista do grupo opositor. Isso porque o Emir do Qatar é dono da rede de televisão.
Um dos jornalistas da delegação, Robinson Pereira, conseguiu gravar entrevista com membros rebeldes em um hotel próximo ao que estamos. O que mais nos chamou atenção foi a declaração de um deles, um laboratorista que veio à Túnis em busca de medicamentos, que disse não entender "o motivo pelo qual a OTAN erra tanto os alvos, sobrevoam os tanques do exército líbio no deserto, mas atingem as áreas residenciais nas cidades" e a afirmação de que eles não têm certeza se a OTAN sairá do país, caso a oposição vença a guerra, mas que eles não querem estrangeiros ocupando seu país como aconteceu no Iraque. "Não sei se eles pretendem ou não, mas eles têm que sair", enfatizou.
Percebemos também que nas falas de todos, fica clara a preocupação com a destruição de toda a estrutura do país. A OTAN com os bombardeios vem causando problemas em ambos os lados. A população do país já sofre há semanas com a falta de energia, alimentos e combustível.Membros da delegação tentarão chegar à fronteira
O grupo decidiu hoje dividir-se e parte dos membros da delegação tentará chegar à fronteira de carro, atravessando a pequena ilha de Djerba - ligada ao continente por uma faixa de terra - e cidades próximas, para observarem a movimentação após os ataques aos postos de fiscalização de fronteira que foram atingidos pela OTAN. Outra parte aguarda no hotel por maiores instruções.
Agora a noite, em conferência via Skype com nosso contato na Líbia, soubemos da morte de um irmão do Dr Musa Ibrahim (porta-voz do governo líbio), um jovem que ocupava um posto de defesa de bairro, estratégia organizada pelas famílias para proteger as casas do ataque de gangues rebeldes. Liguei a televisão no canal da TV Jamahiria, a estatal líbia, para acompanhar o programa do Dr Youssef Sahkir, um analista político, transformado em celebridade na Líbia nos últimos meses. Ele entrevista o Dr Musa Ibrahim sobre a morte do irmão e sobre a situação das cidades retomadas pelo exército líbio.
Um dado interessante sobre o Dr Youssef Sahkir é que durante anos ele conduziu o mesmo programa com viés opositor ao governo e no primeiro mês da guerra, apresentou duras críticas a Muammar Gaddafi, dando voz aos rebeldes que se manifestavam em Benghazi, cidade onde os conflitos se iniciaram. Ele chegou a sair do país e ficar por um tempo no Egito, após a primavera árabe de lá. Depois, recebeu informações sobre as ligações entre os grupos rebeldes e membros da AlQaeda e mercenários da Blackwater e voltou à Líbia passando a denunciá-las em seu programa. Desde então, ele vem acusando as forças militares de estarem cometendo um "massacre desmedido" sobre a população Líbia com o único interesse de expropriar as riquezas do país, com a maior renda per capita da África, e ocupar um ponto estratégico na costa mediterrânea e no Norte da África.
Com os últimos bombardeios da OTAN, com foco único nas estruturas do país e em áreas residenciais, fica cada vez mais difícil sustentar o discurso de que estão agindo com propósitos "humanitários". O volume de líbios que encheu a Tunísia nos últimos dias, denota o medo crescente da população em meio a uma guerra onde os dois lados vem sendo sufocados pelas forças estrangeiras. Como afirmou um dos rebeldes entrevistado há alguns dias, "se eles vieram para ajudar a salvar vidas civis, estão falhando na operação".
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As imagens são do repórter fotográfico Sérgio Alberto.
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