É bom avisar: o texto abaixo é de um homem. Ainda que lendo, um desavisado possa se confundir e achar que uma de "nós" o escreveu, em uma espécie de autodefesa. Mas não, o texto é de Atílio Alencar e, vindo de um homem, além de ser um dos mais bacanas que já li, prova que os homens estão entendendo sim o recado. E ainda bem que ele, o Atílio, não é o único.
Para um mundo novo, mulheres e homens precisarão se reinventar. A Marcha das Vadias é nada mais que uma ocupação de mulheres pelo direito a serem donas de si mesmas, mas é também parte de "um mundo novo em gestação", como diria Galeano. Os grifos abaixo, são meus.
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Com a provocação estampada já no modo como se referem à sua mobilização, as mulheres que integraram a Marcha das Vadias em diversas cidades do país nesse fim de semana recente escancararam o peito nu para desafiar um sistema que há séculos teima em fazer recair sobre elas o peso da proibição. Apesar dos sensíveis avanços em relação à condição feminina na sociedade ocidental – se comparada à realidade vigente até a primeira metade do século XX – ainda vivemos num mundo em que se espera da mulher é que ela sirva. Sirva de mãe, esposa, dona de casa, professora, prostituta, faxineira. Ou sirva de modelo da “mulher bem-sucedida”, empreendedora, liberal, independente – aí então valorizada pelo caráter excepcional de sua condição, confirmando assim a regra ainda vigente.
Por força das próprias rebeliões, as mulheres foram conquistando direitos na sociedade atual e garantindo pouco a pouco, ao menos, a igualdade nas condições de exploração. Mas se como profissionais as mulheres encontram hoje maior facilidade para vender sua força de trabalho, como protagonistas de suas próprias vidas ainda esbarram na violência cotidiana de uma sociedade fundamentada nas prioridades do macho. O feminismo, movimento que primeiro colocou o problema da opressão patriarcal na ordem do dia, ocupou-se de atacar esse modelo, durante muito tempo sacrificando vaidades em nome da luta pela igualdade. Já as manifestantes que marcham no Brasil em 2012 não querem sacrificar porra nenhuma: entendem que já sacrificaram demais durante gerações inacabáveis em nome do medo e das convenções.
E é nesse não querer sacrificar nada – nem as pernas de fora, nem a inteligência, nem o direito de parir ou abortar de acordo com suas escolhas e necessidades – é que se funda um feminismo menos carrancudo, mais debochado, saudavelmente provocativo. Um pós-feminismo, dirão alguns. Mas como quer que chamemos o movimento em curso, seja lá qual for o nome pelo qual a História o designará em registros futuros, o fato é que não cabe mais ao orgulho nem à razão do macho estabelecer o que é certo para elas.
Já era. Podemos esquecer.
Depois que uma mulher tem a coragem de sair para as ruas ostentando faixas nas quais celebra alegremente o “ser vadia”, não há mais nada que possa pará-la. O medo de “cair na boca do povo” acabou; o pior dos flagelos morais que assombrava a mulher do passado – ser acusada de puta, amante, lésbica, de gostar de trepar e gozar – está esvaziado, é motivo de riso, inspiração para mostrar os peitos em público e, conforme o gosto da dona de cada corpo, exibir também os pêlos. Nenhum peito caído é feio, nenhuma axila sem depilação é desonrosa. Feio e triste é suportar o fantasma de uma vergonha que não é sua a oprimir o corpo.
E os homens nisso tudo?
Bom, os mais sensíveis, inteligentes e um pouquinho mais corajosos para reconhecer que a tradição do macho alfa é tediosa, cansativa e afetada, estão obviamente comemorando junto com as mulheres. Os mais medrosos e assustados, ou escondem-se atrás de chistes grosseiros, ou apelam para a agressão pura e simples mesmo.
Aqui no Rio Grande do Sul teve até radialista mandando as tais vadias pra cozinha lavarem a louça. Emplacou, com uma forcinha dos colegas de trabalho e do peso corporativo da emissora dos patrões (o programa chama Pretinho Básico, e vai ao ar pela rádio Atlântida FM), um assunto do dia nas redes sociais com suas expressões visionárias. Um gênio, o rapaz. Conseguiu, de uma só vez, cumprir o desserviço de reforçar um preconceito histórico que assola as mulheres e conquistar a antipatia geral por parte de todas e todos que defendem a superação dos velhos tabus.
No auge do seu humor iluminado, o cara nos presenteia com uma pérola que só poderia ter saído da boca de um ermitão. E ao tentar dissimular mais tarde a intenção grotescamente preconceituosa de seus comentários, ainda aproveita a oportunidade para gerar mais burburinho nas redes com a genial hashtag #ChupaVadia – que, graças ao apelo massivo da rádio em que trabalha, atingiu o primeiro lugar nos trending topics do Twitter.
O mais esdrúxulo é que provavelmente estejamos tratando daquele tipo de cidadão que fica chocado com as notícias que reportam crimes de abuso sexual contra mulheres e crianças. Deve se perguntar que tipo de animal é capaz de cometer tais atrocidades. Só nunca deve ter se perguntado o tamanho do estrago que pode causar com suas piadas infames, quando o tema é tão delicado, e o seu público – o público de uma emissora jovem – tão inclinado à confiar na inocência de tudo que soa engraçado.
É contra esse imaginário truculento e auto-indulgente que marcham as vadias. E nós, que também estamos aprendendo que o significado de vadia pode ser reinventado, marchamos com elas. A louça suja fica para os otários que não percebem que os tempos estão mudando.
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