POR BOB FERNANDES
Ele não foi um. Foi muitos. Assim costumam ser os humanos e suas personas, mas poucos, pouquíssimos deixam a vida com a dimensão, polêmica ou não, que deixaram Hugo Rafael Chávez Frías e os personagens que viveu e interpretou.
A mesma mídia do mundo que sempre buscou encolhê-lo, enquadrá-lo tão somente no papel de clown, de animador das massas, uma espécie de Chaves, o mexicano, passado o perigo –ele em vida- admite nas manchetes, linhas e entrelinhas:
- …o populista que reduziu a pobreza…o caudilho que tirou milhões da pobreza e da miséria…o homem que impactou a América Latina…o legado de Chávez…
Vladimir Putin, o presidente da Rússia, o conhecia bem. Empresas russas estão na Venezuela fazendo negócios, erguendo muitos dos milhares de apartamentos que o governo Chávez entregou, entrega de graça para pobres e miseráveis. Putin, como em breve mostrará a história, uma história, conheceu Chávez em situações limite. Conheceu a ponto de poder assim defini-lo após a morte:
- Chávez foi um homem extremamente exigente consigo mesmo…
Dito isso, o mais importante nessa história, Putin ateve-se ao protocolar:
- Chávez foi um homem fora do comum e forte, que olhava para o futuro…
Putin foi dos primeiros a telefonar para Chávez quando, em abril de 2002, o presidente voltou ao poder depois de pouco mais de 30 horas de um golpe de Estado midiático e militar. Ao telefone, Putin então confessou para Chávez sua perplexidade:
- Isso foi inexplicável.
Um privilégio, para um repórter, viver, testemunhar um golpe de Estado e um contragolpe.
Ver pobres e miseráveis despencarem dos seus morros e favelas para defender o "seu" presidente. E ter a chance de entender profundamente porque fizeram isso com uma paixão e fúria que o jornalismo à distância, asséptico, tenta resumir e embrulhar nas expressões "caudilho"…"populista"…
Não que não possam caber as definições de prateleiras e gavetas, mas elas mais revelam quem delas se vale do que explicam o porquê da paixão e da fúria dos pobres e dos miseráveis. E eles, pobres e miseráveis, eram bem mais do que a metade dos 24 milhões de habitantes da Venezuela naquele março de 2002, exato um mês antes do golpe.
Às sete e quarenta da manhã de um domingo, tocou o telefone no quarto do hotel Tamanaco Intercontinetal. Marisete, assessora do presidente da República, comunicou:
- O senhor deve estar aqui às oito horas. O presidente vai viajar e o senhor irá junto.
A conversa, a entrevista, só começaria à noite, 13 horas depois. Ali, uma primeira lição de Venezuela. Quando alguém garantir que algo irá acontecer "tempranito, tempranito", prepare-se. Esse "cedinho, cedinho", ou "logo, logo", pode demorar. Ou nem acontecer.
A conversa só se deu à noite porque, antes, Chávez queria mostrar a "sua" Venezuela. E apresentar uma ou várias de suas personas.
No Forte Guaicapuro, a 55 quilômetros de Caracas, Hugo Chávez apresentou a alta cúpula militar ao enviado da revista Carta Capital. E apresentou, ao mesmo tempo, o animador de auditório, o comunicador de massas, Hugo Chávez, diretor e apresentador do programa dominical Alô Presidente.
Fundamental aquela manhã e tarde sob sol causticante. Ali estavam muitos dos generais, coronéis e almirantes que, um mês depois, dariam o golpe, ou executariam o contragolpe. As perguntas ao repórter no seu programa, as brincadeiras com a gravata vermelha, facilitariam o trabalho, abririam as portas do Palácio Miraflores um mês depois, no rastro do contragolpe.
Naquela manhã e início da tarde, o presidente/locutor, o "populista" atendeu dezenas de associações de bairro, de comunidades, de sindicatos. Ouviu e respondeu aos remediados, aos pobres e miseráveis.
Ao vivo, depois do programa, ou por telefone durante, autorizou empréstimos bancários, postou-se em favor da senhora enganada na compra de um automóvel, de outra tapeada numa farmácia, entrevistou longamente um corneteiro do Exército.
Diante das câmeras, pediu ao corneteiro o toque da hora do almoço e lembrou: "Vamos às arepas". Arepa, a panqueca que é o feijão com arroz dos venezuelanos.
Naquele Alô Presidente de número 99, ao tempo em que entrevistava o corneteiro, Chávez anunciou uma linha de crédito para militares, no valor de US$ 100 milhões:
- Não é justo que vocês permaneçam sem chances de ascensão nas Forças Armadas, é preciso dar lugar aos jovens que vêm das classes baixas…
Era tarde. O golpe contra ele já estava em andamento. E seria dado por alguns dos que estavam ali, no Forte Guaicapuro.
À noite, na entrevista feita no gabinete presidencial, Chávez, um apaixonado por História, deixaria claro ter a percepção do que se avizinhava.
- O senhor conhece História. (…) Não parece claro que haverá um confronto final?
A essa pergunta, o tenente-coronel eleito presidente quatro anos antes, respondeu:
- (…) teremos o trabalho de derrotar a guerra suja inimiga.
- (…) o senhor cederá?
- Não cederei, não podemos ceder…
Em meio à conversa, a frase que iria para a capa de Carta Capital. Frase profética, não sabíamos o quanto até esse 5 de Março de 2013:
- Sou um soldado. Fico até 2013, ou…
Naquela conversa, outro Chávez. Num lique-lique, tradicional traje que lembra os safáris de Jânio Quadros e as fardas maoístas, ladeado por óleos com Simón Bolívar, António Paes… heróis da Libertação. Em quase tudo diferente do líder de massas, daquele quase "Chaves", do animador de programa de televisão que não poupava nem a si mesmo nos momentos de galhofa.
À noite, no Palácio, um homem de olhar arguto, duro, mas sereno. Algo de acuado que o entorno militarizado e extremas regras de segurança no acesso a ele não negam. Em apenas um momento, uma concessão ao personagem da manhã. E logo à primeira pergunta, também, uma citação a quem seria inspirador e cada vez mais um parceiro estratégico:
- Quem é Hugo Chávez?
- "Sou um tipo que anda por aí". Isso me disse Fidel em certa ocasião e eu gostei da frase: "Sou um tipo que anda por aí".
Um mês depois, na noite do golpe, Chávez receberia um telefonema e conselhos de Fidel Castro. Conselhos que se revelariam sábios:
- Não se imole nem aos seus homens. Venha para Cuba e o receberemos com um milhão de homens e mulheres nas ruas. Isso não terminará assim…
Não terminou. Chávez foi preso, em alguns momentos viveu ações, a tensão e a expectativa de quem seria assassinado, mas voltou ao Palácio Miraflores na noite do sábado, 13 de abril.
Dos 37 chefes de Estado de quem recebeu ligações e cumprimentos, o primeiro foi Fidel Castro.
O experimentadíssimo homem que liderou a queda de Fulgêncio Batista, que, em 2002, desafiava há 43 anos a maior potência da Terra, os Estados Unidos, e que sobreviveu há mais de uma centena de tentativas de riscá-lo do mapa, assim como Putin confessou a Chávez:
- Isso foi incrível. Estou estupefato.
A brincadeira com a gravata vermelha um mês antes, a curiosidade, o desejo de conhecer por dentro um golpe e um contragolpe levariam a quatro dias, noites e madrugadas no Palácio Miraflores. A ouvir quem tivesse histórias para contar naqueles momentos em que as línguas ainda estão soltas pela euforia da vitória.
Daquela história emergiu um outro extraordinário personagem. O general Raúl Isaías Baduel.
Baduel comandava a 42ª Brigada de Paraquedistas, em Maracay, a uma hora e meia de Caracas.
Maracay, onde estavam os caças, a força com capacidade de bombardear, de decidir aquele ensaio de guerra civil. O general entraria para a História com suas ações, e com uma frase.
Final da manhã do sábado. O governo de Pedro Carmona Estanga, o empresário depois conhecido como "El Breve", em menos de 24 horas havia dissolvido todos os poderes.
A oposição que acusava Chávez de ser um ditador, que detonara o golpe liderado por militares e por grande porção da mídia, em especial emissoras de televisão, ao tomar o Poder, fechou a Assembleia Nacional, o Judiciário, o Ministério Público…
Estão todos no Miraflores neste final de manhã do sábado, 13 de abril de 2002, inclusive a mais alta cúpula da influente Igreja Católica. Não mais os mestiços, os descendentes de negros, índios e mulatos, os zambos de até a antevéspera. Os novos ocupantes do Palácio, está na pele, têm traços caucasianos.
Senhores em trajes de fino corte, senhoras de vestes e joias faiscantes, tudo registrado pelas câmeras de um casal de jovens irlandeses. Que flagram o momento em que as taças de champanhe, garrafas e copos são abandonados sobre as mesas. O telefonema do general Baduel é decisivo:
- Eu não negocio. Eu me apego à Constituição. O presidente Chávez me garantiu que não renunciaria, eu acredito nele. E, se ele renunciasse, o vice-presidente é quem deveria tomar posse. Vocês golpearam o presidente. Isso é um golpe de Estado…
No telefonema, dado para um militar de patente superior à sua, Baduel, que moveu-se todo o tempo atento aos ensinamentos de A Arte da Guerra, de Sun Tzu, dá a estocada final:
- Meu general, se vocês não devolverem vivo o presidente Hugo Rafael Chávez Frías, faltarão postes na Venezuela para pendurá-los.
O general Raúl Baduel é hoje, e já há quatro anos, um prisioneiro do governo que foi de Chávez e agora é de Nicolás Maduro.
Amigo pessoal há mais de 30 anos, colega de Academia Militar, compadre de Chávez, ministro do Exército e da Defesa depois do golpe, Baduel está condenado e preso em Ramo Verde, prisão em Los Teques, a uma hora de Caracas.
Acusado de corrupção, Baduel nega com veemência. Em 2007, ele se opôs – e venceu – à mudança da Constituição que permitiria outra reeleição. Baduel, hoje diz ser "um preso de consciência". Um preso político.
Terra Magazine tem ouvido personagens decisivos da História recente e atual da Venezuela. Nos próximos dias, Baduel contará aqui detalhes da história e do rompimento do amigo e presidente que ajudou a salvar do golpe de 2002.
Nesse sábado, 13 de abril, o contragolpe se completa na sequência do telefonema de Baduel.
Vindos pelo subterrâneo que liga ao outro lado da Avenida Urdaneta e ao Palácio Branco, onde se aquartelam, jovens oficiais e soldados da guarda pessoal de Chávez tomam de volta o Miraflores.
No início da tarde de sábado, via CNN, a imagem corre o mundo. No telhado do Miraflores, o tenente K, 39 anos, fuzil numa das mãos, faz o V da vitória.
Amontoada, espremendo-se contra as grades do palácio, a multidão enlouquecida. Eles, como se diz com uma ponta de respeito e temor, "baixaram dos cerros". Desceram das montanhas, das favelas de Caracas, para defender seu líder:
- Devuelvan Chávez… Con Chávez hasta la muerte… Chávez, muero por ti…
Pouco mais de dois anos depois. Quinze de agosto de 2004. Onze e meia da noite. No mesmo gabinete presidencial, acompanho com Chávez os minutos finais do Referendo que, de maneira arrasadora, confirma seu mandato.
Estamos a sós, por quase uma hora. O Chávez apaixonado por História aponta para o óleo com António Paes e discorre sobre seu desejo de fazer reparos na saga da libertação da América Espanhola:
- Esse nasceu pobre e morreu rico, em Nova York. Traiu o bolivarianismo. Quando fazendeiro, foi contra a libertação dos escravos. Já procurei um pintor. Falei: "Você faz um quadro no mesmo estilo". Estou pensando em tirá-lo daí, em colocar Ezequiel Zamora ou Francisco de Miranda no lugar de Paes…
O resultado é proclamado extra-oficialmente. César Gaviria, secretário-geral da OEA, a Organização dos Estados Americanos, não quer aceitar a vitória de Chávez. Ouve a oposição e fala em fraude.
Jimmy Carter, presente em mais de 50 países com seu Centro Carter, está em Caracas como observador internacional. Para atestar, ou não, a legalidade da eleição. Carter fala com Chávez ao telefone e o felicita pela "vitória limpa". E segue para um encontro com Gaviria.
O ex-presidente dos Estados Unidos diz ao secretário-geral da OEA que não existem "sequer indícios" de fraude:
- O processo foi limpo, nós acompanhamos.
Quarenta e oito horas depois, ao entrar no Limoncello, fino restaurante da capital, Carter é vaiado.
Néstor Kirchner, o presidente argentino, telefona. Fidel Castro também. E Lula?
- Ele me ligou ontem à noite, de Brasília, ia para a República Dominicana e depois ao Haiti, onde vai jogar a seleção brasileira. Ele me convidou para ir ao futebol, mas nesse jogo não dá para ganhar dos brasileiros…
Chávez considera seus erros:
- O mais grave, no exercício do poder, foi descuidar da comunicação lá no início.
- Reconheço que, nesse cenário, radicalizamos demais, porque sem ter como falar com as classes médias, perdemos um bom pedaço delas. Por isso, ao voltar do golpe, com o crucifixo nas mãos, pedi perdão ao povo venezuelano e me declarei mais aberto do que nunca ao diálogo.
Dois anos antes, grande parte da mídia embarcou no golpe, ajudou a patrociná-lo. Hugo Chávez teve então todas as provas legais para cassar a concessão de canais de televisão. Por que não o fez?
- Porque as coisas, no poder, não se movem assim, de maneira linear – é a resposta na noite do Referendo.
A propósito. Dois meses antes, num encontro secreto costurado por Jimmy Carter, Chávez conversou com Gustavo Cisneros, o maior milionário da Venezuela e o segundo na América Latina.
Dono da rede de TV Venevisión, e da DirecTV/América Latina, distribuidor da Coca-Cola, etc. Na conversa, Cisneros informou ao presidente Chávez:
- De agora em diante, a minha televisão vai mudar, mas pouco a pouco, porque de outra maneira não seria possível.
A TV de Cisneros, pouco a pouco, mudou.
Chávez me leva à Sala de Crise, onde, com dezenas de televisores, ministros, equipes de analistas e de hackers acompanham, rastreiam a eleição por todo o país.
Chávez consulta aos seus assessores mais próximos. O que fazer primeiro? Falar com os 132 jornalistas estrangeiros e outros 50 venezuelanos credenciados, ou dirigir-se à multidão?
Convocar uma cadeia nacional de rádio e TV? O presidente surpreende o repórter:
- Vou de terno ou sem terno?
Não me cabe responder. Chávez contraria à quase totalidade dos assessores. De camisa vermelha e tênis, discursa no balcão interno do Palácio. Ali, convidados estrangeiros, e milhares dos seus mais próximos amigos e seguidores. No outro lado do Miraflores, a multidão acompanha o discurso em telões.
Pouco antes, o presidente que falava em "conciliação" ouve a sugestão de Jesse Chacon, ministro da Comunicação e antigo companheiro de armas:
- Seja magnânimo.
Chávez arranca gargalhadas ao repetir, em forma de pergunta, a sugestão:
- Magnânimo…?
Antes do discurso, peço licença por alguns minutos. Para ver o que se passa na Avenida Urdaneta, onde o povo começa a chegar junto com as notícias da vitória. Ao meu lado, o deputado argentino Miguel Bonasso, amigo pessoal do presidente Néstor Kirchner.
Os olhos de Bonasso se arregalam diante da multidão que, passada a meia noite, avança pela Urdaneta em direção ao palácio. Ali, um extrato de uma porção do chavismo.
Como se num filme do realismo italiano, homens e mulheres em cadeiras de roda, homens-tronco, descamisados ou em farrapos vermelhos avançam no início da madrugada na violenta Caracas.
Dos alto-falantes vazam os épicos de Alí Primera, o finado poeta e cantor da Revolução Bolivariana. A horda de desdentados ou quase grita, chora, chama por Chávez. O deputado Bonasso gargalha diante de tanta alegria, tanta paixão, e concorda:
- Imaginemos se a bebida estivesse oficialmente liberada nesta eleição.
Dois anos depois, em 2006, novamente no mesmo palácio, na mesma sala, outro longo dia. Outra noite e madrugada com mais uma vitória de Hugo Chávez, a da reeleição.
Outra entrevista. Outras conversas, como muitas outras ainda viriam. Mais revelações, bastidores para uma história a ser contada.
Quarta-feira, 6 de março deste 2013. Dez e quarenta e cinco da manhã, hora de Caracas. O corpo de Hugo Rafael Chávez Frías está no caixão coberto pela bandeira da Venezuela. O caixão, carregado pela Guarda de Honra, vai deixar o Hospital Militar.
Hugo Chávez será velado com honras na Academia Militar, dentro do Forte Tiuna, a maior guarnição militar do país. Desde a madrugada, milhares e milhares de venezuelanos fazem fila para, pela última vez, ver o seu presidente.
No hospital, a família se despede do filho, do pai, do irmão. Um Pai Nosso, e o hino que Hugo Chávez tanto amou e que às vezes, sem o perceber, cantarolava em meio a reflexões:
- Gloria al bravo Pueblo que el yugo lanzó/ la ley respetando la virtud y honor…
O povo, à frente do Hospital Militar, em silêncio. Silêncio e lágrimas. Quem lá está ouve, de quando em quando, o grito, puro desconsolo, desespero:
- Que Viva Chávez!