Por Antonio Luiz M. C. Costa
Carta Capital
O argentino Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, reza missa na Capela Sistina nesta quinta-feira 15. Foto: Osservatore Romano / AFP |
Não se culpe só os jornalistas: até os especialistas e os prelados mais próximos do Vaticano ficaram surpresos com a escolha do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio. Ao ter notícias da fumaça branca, Dom Mariano Crociata, presidente da Conferência Episcopal Italiana (ou seja, o equivalente italiano da CNBB) apressou-se a enviar cumprimentos a Angelo Scola, tido como favorito por quase toda a mídia. Uma gafe difícil de esquecer.
É um lembrete de que tentar tirar demasiadas conclusões a respeito do novo papa com base em indícios vagos, antes que ele tome atitudes públicas e explícitas, corre o risco de dar com os burros n’água. Ainda assim, vale tomar nota de alguns pontos interessantes:
Não é Angelo Scola, nem Odilo Scherer – O cardeal de Milão era tido como o favorito de Joseph Ratzinger e da maioria dos cardeais diocesanos (os que atuam fora do Vaticano), enquanto os mais ligados à Cúria (a burocracia vaticana) supostamente preferiam o italiano Gianfranco Ravasi, do Conselho de Cultura do Vaticano (apoiado por Tarcisio Bertone, secretário de Estado de Bento XVI) e o argentino Leonardo Sandri, da congregação das Igrejas Orientais (apoiado por Angelo Sodano, secretário de Estado de João Paulo II). Visto que nenhum dos grupos parecia ter maioria absoluta, o nome do arcebispo de São Paulo era citado como um provável candidato de conciliação entre as correntes (provavelmente no contexto de um acordo para nomear Sandri como Secretário de Estado), por ter uma carreira pastoral no Brasil, mas também ter boas relações com a Cúria. Por que nenhum deles foi eleito?
Foi candidato forte em 2005 – No Conclave de 2005, Bergoglio, apoiado pelo também jesuíta e influente (mas à época, já muito adoentado) cardeal Carlo Maria Martini, foi o mais votado depois de Ratzinger (42 a 10, 65 a 35 e 72 a 40 nas primeiras apurações, segundo Pope Benedict XVI de Thomas Streissguth), antes que ele mesmo pedisse (“quase em lágrimas”, escreveu Marco Tosatti, do jornal La Stampa) a seus partidários para desistirem, permitindo que Ratzinger fosse eleito com 84 dos 115 votos. Representava a insatisfação com a continuidade da linha dura de João Paulo II, com a ascensão de ordens laicas demasiado vinculadas a interesses políticos e econômicos terrenos (Opus Dei, Legionários de Cristo, Comunhão e Libertação, Neocatecumenais e assim por diante) e a vontade de eleger um representante do terceiro mundo, mas pesava contra ele a suspeita de colaboração com a ditadura argentina e a preferência da maioria pelo que parecia ser uma versão mais calma e reservada do papa recém-falecido e apontaria para uma tranquila continuidade.
Pelo visto, a maioria dos cardeais se arrependeu e quis dar uma segunda chance a Bergoglio, que representa uma forma mais tradicional de organização católica (a ordem dos jesuítas). É menos rígido do ponto de vista do clero em questões de dogma, disciplina, forma e ritual – mais “moderado” que Ratzinger no sentido de não incentivar as missas tradicionais em latim ou o uso da batina, e é aberto ao ecumenismo, pois realizou cerimônias conjuntas com evangélicos e abriu a catedral a eventos com judeus e muçulmanos. Mas é igualmente conservador na abordagem da política e da moral laicas (na Argentina, foi o mais feroz opositor do aborto e do casamento homossexual, que denunciou, palavras literais, como “jogada do diabo”).
É idoso e frágil – Eleito aos 76 anos, Bergoglio tem apenas dois anos menos do que Ratzinger em 2005 e é o nono papa mais idoso ao ser eleito em toda a história da Igreja. Além disso perdeu grande parte de um pulmão aos 21 anos (provavelmente um pneumotórax por tuberculose, como ainda se fazia em 1957) o que limita sua atividade física e o torna paciente de alto risco no caso de novo problema pulmonar. Mais recentemente, sofreu de lombalgia e de inflamação aguda do nervo ciático. Por isso, a maioria dos vaticanólogos o descartava: mesmo com um estado geral aparentemente melhor, Ratzinger renunciou por alegadas razões de saúde e supunha-se que os cardeais queriam, desta vez, um papa mais vigoroso e com longa expectativa de vida. Aparentemente os especialistas se enganaram: os cardeais não queriam um papa forte e sim um com o qual possam esperar nova eleição em não muito tempo, para terem a oportunidade de corrigir o rumo, ou por alimentarem ambições próprias. Mais do que possíveis gafes, a omissão como um dos supervisores do Banco do Vaticano ou a ligação com a Opus Dei, pode ter pesado com Dom Odilo seus “meros” 63 anos, que faziam prever uma expectativa de duas décadas de papado.
É um latino-americano de direita – A história segundo a qual Bergoglio delatou e entregou dois companheiros jesuítas à tortura pode ser ou não um mal-entendido, apesar de pelo menos um dos torturados ter morrido, anos depois, convencido da traição do seu superior. Mas é inegável que não criticava a ditadura, sorria ao lado dos ditadores de turno, não ouvia os dissidentes, expurgou qualquer traço da Teologia da Libertação entre os jesuítas argentinos (antes fortemente progressistas) e desencorajou famílias que tentavam recuperar bebês roubados pelos militares. Nisso, acompanhou a Conferência Episcopal, cujos representantes esclareceram à Junta Militar em setembro de 1976: “nós bispos, sabemos que um fracasso (do governo) levaria com muita probabilidade ao marxismo e por isso acompanhamos o atual processo de reorganização do país, encabeçado e organizado pelas Forças Armadas, com compreensão, adesão e aceitação”.
Escreveu Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz: “não considero Jorge Bergoglio cúmplice da ditadura, mas creio que lhe faltou coragem para acompanhar nossa luta pelos direitos humanos”. Quando a Argentina, muito depois, veio a ter um governo de centro-esquerda, o arcebispo tornou-se um opositor ferrenho. Se a escolha de um latino-americano sinaliza interesse especial da Igreja pela América Latina, é no mesmo sentido que a escolha de Karol Wojtyla sinalizou interesse pelo então bloco soviético e com a mesma preocupação, pois hoje este continente concentra as mais dinâmicas experiências de esquerda e de contestação ao imperialismo. Que ninguém se iluda com suas ocasionais críticas ao neoliberalismo, que João Paulo II também fazia: não se trata de progressismo, mas do corporativismo católico conservador de Leão XIII, que fundamentou regimes como os de Francisco Franco e Antonio Salazar.
Escolheu o nome de Francisco – Na Igreja Católica, como em geral nas religiões tradicionais, nenhum símbolo é gratuito. Por que um nome novo e não algum dos mais tradicionais, como esperavam tanto vaticanólogos quanto apostadores (“Leão” era o mais cotado entre estes)? A mídia o associou a Francisco de Assis, lembrado como símbolo de humildade e de amor aos pobres e à natureza e supôs que isso indicaria que Bergoglio faria da simplicidade e do trabalho social o eixo do seu pontificado. Não se pode excluir que exista também essa intenção e em Buenos Aires o novo papa ganhou reputação de ser austero, inimigo do luxo (por andar de metrô em vez de carro oficial) e praticar a caridade (embora esse seja um dever de qualquer membro do clero). Mas o Portal dos Jesuítas do Brasil, que decerto conhece melhor a cultura da sua ordem, garante que “a escolha do nome faz referência a São Francisco de Assis, que fundou a ordem dos Franciscanos, mas principalmente a São Francisco Xavier”.
Francisco Xavier é conhecido como um dos fundadores da Companhia de Jesus ao lado de Ignácio de Loyola e como missionário na Índia, Japão e China. Foi admirado pelos jesuítas como o homem que converteu mais fiéis ao catolicismo desde Paulo de Tarso e odiado pelos não-católicos da Índia como o homem que destruiu estátuas de deuses, incendiou templos hindus e levou a Inquisição a Goa para perseguir não só hindus, judeus e muçulmanos como também os cristãos sincréticos da antiga tradição de São Tomé. Desse ponto de vista, a promessa implícita na escolha do nome é a de se esforçar pela conversão dos infiéis, reconquistar os que se afastaram da Igreja e continuar a perseguir os supostos hereges.
É da natureza da esquerda católica acreditar em milagres. Mas é mais fácil Bergoglio andar sobre as águas ou fazer o proverbial camelo passar pelo fundo de uma agulha do que se revelar um progressista. Não há dúvidas de que é um homem inteligente, politicamente hábil e que como a maioria dos jesuítas, tem uma excelente formação cultural e científica (formou-se em química). No momento em que o Vaticano enfrenta uma série de escândalos sexuais e financeiros e suas disputas internas vazam pelos jornais, escolheu dizer em seu primeiro sermão como papa que o maior risco da Igreja é “se converter numa ONG piedosa” e que “quem não reza ao Senhor, reza ao diabo, já que quando não se proclama Cristo, se proclama a mundanidade do diabo, do demônio”.
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