Valter Campanato /Agência Brasil |
Por Juliana MSC
"O que significa ser escritor em um país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo 'capitalismo selvagem' definitivamente não é uma metáfora"
A polêmica abertura da Feira do Livro de Frankfurt protagonizada por Luiz Ruffato em 2013 - que levou Ziraldo a uma quase síncope nervosa - precisa ser revista (com mais lucidez agora) e refletida por todos nós. O texto duro, considerado "inadequado" para a abertura de uma feira literária que, ainda por cima, naquele ano homenageava nosso país, adquiriu ares de profecia se considerarmos o que ocorreu em nossa conjuntura desde então.
"Embora a afirmação de nossa subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro - é a alteridade que nos confere o sentido de existir - o 'outro' é também aquele que pode nos aniquilar"
Me chama a atenção o quanto esse atual cenário de ruptura está nos levando a legitimar, de maneira alarmante, violências subjetivas como a misoginia característica de parcela da nossa sociedade, sem que esse recrudescimento seja percebido pela maioria dos homens (e boa parte das mulheres). Com exceção daqueles poucos que compreendem a luta feminista para além do "mundo feminino" que só existe no imaginário do Vice.
Tantos anos de luta por direitos, à custa de muitas lágrimas (e perdas) e as mulheres precisarão reiniciar os debates, refazer caminhos, reeducar seus meninos e meninas. Estamos caminhando surpreendentemente rápido nessa "ponte para o passado", uma regressão (até mesmo psicológica) que vai contaminando as pessoas sem que elas percebam.
Em alguns casos reflito se todas essas "bestas" internas já não estavam ali, guardadas, enrustidas, aguardando a oportunidade de se sentirem libertas de tantas amarras ideológicas que foram tornadas leis, políticas públicas ou cultuadas politicamente em uma conjuntura social de um governo popular.
"Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê (...) o semelhante torna-se o inimigo"
Já não bastavam jovens cultuando personagens nefastos como 'Bolsonaros' e cia - na contramão inclusive do que é típico da juventude, que é a identidade libertária - parece que vamos ter de lidar também com piadas preconceituosas renovadas, agressões naturalizadas, o machismo tornado "institucional".
"E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença."
Até mesmo personalidades como Marta Suplicy, que um dia foi referência vanguardista por trazer o diálogo sobre o feminismo para a televisão brasileira (em plena ditadura militar!), se apequenou para legitimar a sucessão de violências que foram e ainda estão sendo cometidas. Não só contra as mulheres, mas também contra a diversidade, a cultura, a educação, os direitos humanos.
Ou seja, além do acúmulo de ódio de classe, de gênero, racismo, da xenofobia, da intolerância que nos levou (como sociedade) a este estado de coisas, caminhamos a passos largos para um aprimoramento não do que temos de melhor como nação, mas sim do que há de pior, daquilo que antes era vergonha e que hoje vem sendo, pouco a pouco, tornado sinônimo de "sucesso". Uma inversão de valores gritante e que é amplificada pelo tratamento antiético da mídia de massa que embarcou no golpe de Estado e se recusa a narrar os fatos com o mínimo de honestidade intelectual. O resultado é que uma população, como lembra Ruffato, "formada por uma maioria de analfabetos funcionais" sequer é capaz de fazer a crítica da informação-produto que consome.
Ou não lemos Gilberto Freyre, Nelson Werneck Sodré, Jorge Amado, Darcy Ribeiro e outros teóricos de nossa identidade cultural, ou escolhemos esquecer tudo o que vivemos e, se é assim, "estaremos condenados a repetir nosso passado", como nos ensina o filósofo George Santayana.
Daí porque volto a mencionar Ruffato que, em Frankfurt, escolheu não dourar a pílula e falar do que realmente nos faz brasileiros.
Para quem quiser ouvir os quase 12 minutos em que o escritor Luiz Ruffato coloca o dedo em nossas feridas:
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