"Se não estás prevenido ante os meios de comunicação, te farão amar o opressor e odiar o oprimido" Malcom X

quinta-feira, 13 de outubro de 2005

O Brasil em 2105

Preferencialmente, esse blog tem por política, evitar a reprodução mera e simples de artigos que não sejam de autoria de um de nossos colaboradores. Porém, alguns valem a pena e são complementares nas discussões que fomentamos por aqui.

O artigo abaixo, acerca do desarmamento, é o mais lúcido que já li até agora sobre o assunto:


O Brasil em 2105
José Paulo Lanyi

O debate sobre a proibição ou não da venda de armas no País é uma afirmação da nossa Democracia. Foi-se o tempo em que só se discutia futebol neste País, o que me enche os olhos.

Uma das peculiaridades dessa polêmica é a "desideologização" da escolha. Como bem sublinhou o Moacir Japiassu, esta não é uma porfia esquerda x direita. Graças a Deus (ou a Marx), pois falta de criatividade haveria, afinal, de ter limite.

Tenho recebido e-mails de colegas SIM e de colegas NÃO. Jornalistas não podem e não devem se furtar de influenciar, em um momento histórico crucial. Daí a profusão de mensagens, seja por e-mail, seja pelo Orkut, ou em artigos e bate-papos etílicos.

Há bons argumentos de ambos os lados, a escolha é mesmo espinhosa. Nenhuma das opções é a ideal, talvez essa seja a única conclusão pacífica.

Quando se pensa que tudo já foi dito, vem-me à mente um pensamento que poucos têm levado em conta. É disso que vou falar aqui para explicar o que me leva a votar pela proibição.

Não enxergo o jornalismo como um mero espelho do dia-a-dia. Vejo-o também como uma grande máquina projetora da História. É assim que, daqui a cem anos, esta mesma Nação poderá conhecer-se pelas linhas do passado.

Tudo o que for publicado hoje poderá ser lido em dezenas, centenas de anos. Basta que se arquive.

Uma curiosidade: como será este Brasil em 2105? Pacífico ou violento? Será que a população continuará embaraçada pelos bandidos e pela inoperância estatal? Ou seremos, enfim, uma civilização? Vejamos a etimologia dessa palavra, conforme o dicionário eletrônico Houaiss: "civilizar + -ção, por inf. do fr. civilisation (1721) 'jurisprudência', (1757) 'o que torna os indivíduos mais sociáveis', (1760) 'processo histórico de evolução social e cultural', (1767) 'estado ideal de evolução material, social e cultural para o qual tende a humanidade'; f.hist. 1833 civilisação".

Não sabemos o que será de nós, o que torna ainda mais difícil a nossa opção, pois seremos cobrados pela nossa escolha, no dia seguinte ao do referendo e daqui a duzentos ou trezentos anos.

Como omissão quase sempre é sinônimo de covardia, ao menos de negligência e de egoísmo, proponho-me a considerar algumas idéias.

Sou um pacifista, portanto armas não combinam com o meu ideal - ainda que se diga que dois países que detenham a bomba atômica estão fadados a se suportarem (até o dia, respondo eu, em que aparecer uma meia-dúzia de dementes para apertar o botão).

Filho de oficial do Exército, só vim a disparar uma arma de fogo há uns cinco anos, levado por um amigo, juiz de direito, ao GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais), da Polícia Militar. Atirei com revólveres e pistolas de diversos calibres: 38, 45, 765, 357. Também estraçalhei o meu alvo com uma 12 e com uma submetralhadora Uzi. Uma estréia e tanto. Apesar da novidade, não gostei da experiência. Fiquei me perguntando como alguém que se diz civilizado pode desfrutar o prazer de destruir o que quer que seja.

Atirar me pareceu estúpido.

O que vou dizer agora não é um raciocínio a favor do SIM, é apenas um fato coincidente: anos depois soube, chocado, que o soldado que me orientou naquele dia foi pego, tempos mais tarde, furtando armamento do quartel. Acusado formalmente, com a vida em frangalhos, o "sniper" ainda perdeu a mulher, que lhe reprovara a atitude. Ela foi embora e envolveu-se com um soldado do Corpo de Bombeiros. Transtornado, o PM pediu-lhe que voltasse. Ela recusou-se. O soldado então invadiu a casa dos ex-sogros e, na frente do filho, assassinou a mulher e matou-se em seguida com um tiro na cabeça.

Não gosto de armas, como não gosto de malucos.

O que importa mesmo, em minha análise, é a bestificação, a sensação brutal implícita naquela fração de segundo seguinte, em que se ouve uma explosão, simultânea ao "tranco" que se impõe à mão, e algo muito feio se sucede lá do outro lado.

Impressões à parte, volto a um parágrafo anterior para afirmar que não teremos uma civilização enquanto pensarmos e agirmos como um bando de macacos armados e "cheios de razão". Não podemos pensar apenas no minuto seguinte, temos de olhar para o futuro, temos um compromisso histórico com a evolução da humanidade (por piegas que isso possa parecer a alguns).

É evidente que a proibição não vai resolver tudo, isso todo mundo sabe. Mas deverá amenizar algumas conseqüências desse grande equívoco cultural, dando margem a cobranças altissonantes da sociedade, que, impaciente, terá o maior dos argumentos a seu favor na luta contra a criminalidade resultante da omissão do Estado: o exemplo.

Há quem vá pagar com a própria vida, no hiato entre a incompetência estatal e o aprimoramento paulatino da segurança pública? Sem dúvida, eu mesmo posso ser um desses. Mas a História é assim, é ingrata e traiçoeira, sempre haverá sacrifícios. Não podemos, contudo, deixar de agir por medo de que as coisas fiquem como estão. Não, a exigência é um dos motores da civilização, o grito é uma condição da Democracia, que seja exercido por todo o sempre.

É preciso, pois, começar.

Mais de cem anos atrás, a Lei Áurea despejou milhões de negros na inexorabilidade da miséria. Teria sido preferível que fossem tratados com a dignidade que se deve a todo cidadão? Sem dúvida. Teria sido preferível que, libertados dos ferros, recebessem todos os instrumentos necessários para a construção da sua cidadania? Sem dúvida.

Ainda hoje os negros brasileiros estão sofrendo, manietados pelo passado. Mas pergunte a qualquer um deles o que acharia se, sob o pretexto de apenas libertá-lo sob as condições ideais, houvessem adiado a sua alforria para quinhentos anos depois. Teríamos, até hoje, o espetáculo horripilante das casas-grandes e das senzalas, da negação literal e absoluta da condição humana. "Ah, a miséria é pior do que isso...", tal é a cantilena recorrente dos hipócritas. Por que não vão à praça pública defender o agrilhoamento dos favelados? Aguardo sentado a primeira passeata pela escravidão dos pobres.

Eis o ponto de vista que me faz falta nos debates jornalísticos sobre o referendo: a perspectiva histórica, o olhar civilizatório. Que o futuro nos julgue a todos. A gente conversa em 2105.

No Comunique-se, em 13/10/05 http://www.comunique-se.com.br/

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