"Se não estás prevenido ante os meios de comunicação, te farão amar o opressor e odiar o oprimido" Malcom X

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Bolívia, Diário de Viagem III - En La Higuera

Dormimos no Hotel Teresita na praça de Vallegrande. Pela manhã bem cedo, nos encontramos com o resto da delegação no Joanita e fomos para o ônibus para tentarmos continuar rapidamente nossa viagem rumo a La Higuera. O Ato Principal na praça começará às 14h e já estamos atrasados. Chegamos já no final das manifestações e do discurso de Evo Morales. A cidade está lotada. O que não é difícil. La Higuera fica literalmente no pico de uma das mais altas montanhas da Bolívia, a quase 4000m, e é muito pequena mesmo. Cerca de 150 habitantes, umas poucas casas com chão de terra e nada mais. Na entrada da cidade, uma grande estátua de bronze do Che com uniforme militar, uma praça com um busto, uma lanchonete onde encontramos maçãs e água quente (aqui nem se sabe o que é uma geladeira), uma outra pedra com outro busto do Che e algumas inscrições. Mais à frente, no final da cidade, apenas alguns passos depois, a escolinha onde executaram el comandante que hoje é um museu com objetos que pertenceram à ele e seus companheiros. É um vilarejo muito, muito pobre. A maioria dos locais sorri para nós com bocas sem dentes e a pele marcada pelo clima andino.

Na escolinha de La Higuera, filmamos e fotografamos outra bonita manifestação. Representantes de várias entidades com suas bandeiras entoam canções de protesto. Até a Internacional Comunista foi lembrada por militantes brasileiros. Cada um recebe um pequeno saquinho de pano com a foto do Che e todos são convidados a pegarem um pouco dessa terra "sagrada" e levar para casa, como lembrança. Muitos discursos pela construção da Revolução Socialista Bolivariana são ouvidos. Esta aliás, é a palavra de ordem na América Latina agora. Simón Bolívar é o referencial dos que pretendem construir o Socialismo do Século XXI. E o povo latino está unido neste propósito. Chavez, Morales, Rafael Correa, Fidel Castro, Daniel Ortega aguardam ansiosamente o resultado das eleições no Paraguai onde o futuro presidente ex-bispo Fernando poderá se juntar a eles nesse eixo da Alba que se fortalece como uma alternativa à política norteamericana que vem engolindo a cultura latina ao longo dos tempos.

Canais de TV apenas da América Latina (excetuando o Brasil) cobrem a movimentação. Bandeiras de todas as nações são vistas pelas ruas, também nas camisetas e bonés. Da Europa, vimos turistas da Holanda e da Suíça apenas. Os pouquíssimos americanos costumam dizer por aqui que são canadenses para evitar hostilidades. O povo latino rejeita a cultura norteamericana e não se furta em demonstrar isso. Os brasileiros são vistos, aliás, como "serviçais", Lula por aqui não tem moral alguma, para a maioria ele representa alguém do povo que chegou ao poder mas depois se rendeu aos encantos do capitalismo selvagem e vendeu o Brasil à política neoliberal. O PT é visto como um partido que se preparou para o poder apenas pela via institucional e agora não sabe o que fazer pois perdeu suas bases. E, claro, ouvimos muitas piadas dos "hermanos" argentinos, especialmente relativas ao futebol.

Ao pararmos em Samaipata para almoçar, vejo um anúncio na TV de um documentário que passará a noite no Discovery Latino. Imagens do tempo em que el Che era ministro em Cuba e do famoso discurso na ONU onde ele disse que "os EUA teriam que se render ao crescimento do socialismo latinoamericano". Também vimos o anúncio da avant premier do filme "Miranda regressa" realizado pela produtora venezuelana Villa Del Cine, criada por Chavez para "competir" com a indústria hollywoodiana. O presidente do Equador, o intelectual Rafael Correa, será condecorado nesta festa de lançamento do primeiro longametragem bolivariano.

Vimos muitos estudantes com a camiseta "La hoja de coca no es droga" (a folha de coca nao é droga) num protesto silencioso contra o preconceito que prejudica a maior produção agrícola do país. Os maiores compradores da produção cocaleira são as indústrias farmacêuticas e as de refrigerantes (como a Coca-cola, claro, vc pensou que era feita de que?), os produtores que vendem ao narcotráfico ficam escondidos nas montanhas em locais de difícil acesso geralmente próximos a aeroportos clandestinos. Nesta região montanhosa não é difícil se esconder. O povo boliviano definitivamente não apóia o narcotráfico e, de certa forma, são os turistas, principalmente europeus, que alimentam esse mercado, vindo à Bolívia para comprar a "pura".

Encontramos outra senhora que conviveu com o Che na escola em La Higuera. Ela diz que na época se oferecia uma recompensa equivalente ao peso da pessoa em ouro para quem entregasse o paradeiro do combatente. Diz também que ele bebia pouco líquido para não ter que urinar. Isso ajudava a despistar os que andavam à sua procura. Hoje, diz ela, ninguém por aqui pensa mais nele, ficou no passado. Com exceção de pessoas como ela que rezam a San Ernesto para "trazer turistas à cidade e ajudar o povo daqui".

Um fato interessante do povo boliviano é que existe uma separação étnica velada. De um lado os coile, descendentes dos indígenas e campesinos que vivem em cidades como La Paz e Potosí, de outro os camba que vivem a maioria em Santa Cruz de la Sierra e descendem das raças brancas, isso segundo eles mesmos porque para nós que viemos de fora, todos tem traços indígenas. A diferença é que os camba são mais altos, têm rostos menos marcados e possuem melhor poder aquisitivo. Por uma série de questões, históricas principalmente, são financeiramente mais bem-sucedidos e chegaram a realizar uma tentativa de movimento separatista após a vitória de Evo Morales. Para eles, um presidente indígena é algo vergonhoso e que eles não engolem. Em todos os lugares em Santa Cruz - que é a Nação Camba por excelencia - onde perguntei, não há opinião formada sobre a política de Evo, apenas uma rejeição por ele ser de origem indígena. Os cruceños (povo de Santa Cruz) se enxergam como descendentes de espanhóis e não gostam dessa referência indígena. A diferença entre nós, basicamente, é que por aqui nós praticamente eliminamos as nações indígenas, lá elas sobreviveram e representam maioria, a maioria que elegeu Evo, diga-se. Nas montanhas por onde andamos agora, a maioria é de origem coile e não visita muito a cidade justamente por se sentirem discriminados.

Ao entardecer, inicamos nossa viagem de volta a Santa Cruz, onde só chegaremos por volta de 23h e de onde o pessoal que está conosco rumará quase que imediatamente para o aeroporto. Nós, da equipe de filmagem, ainda ficaremos mais um dia e vamos aproveitar para ver a exposição no museu de Santa Cruz feita por um artista boliviano (ou seria bolivariano?). O cartaz da mostra diz "Yo maté el Che" e tem vários rostos do Che em sua foto mais famosa mas com o carimbo de empresas como McDonald´s, Goodyear, Hollywood, etc no lugar dos olhos. A mostra foi recomendada pelo amigo Maurício, membro do MIR Chileno que nos contou coisas absurdas sobre a repressão que acontece no Chile da que pensávamos socialista Michele Bachelet. No Chile hoje estão proibidas quaisquer manifestações de rua, passeatas, protestos, etc. A censura é total em todos os meios de comunicação e nas universidades. Eles se preparam para disputar as próximas eleições já que até o Partido Comunista se aliou à direita lá. Pensando bem, não fizemos muito diferente no Brasil...

Nos despedimos aos poucos desta tierra boliviana, destas montanhas, da tierra sagrada onde luchou e tombou el Che, sabendo que nenhum de nós voltará o mesmo. É interessante lembrar que aprendemos na escola quem foram os presidentes americanos (lembra de roosevelt ou kennedy?) mas nunca terem nos falado de Simon Bolivar. Fomos colonizados por portugueses e nunca houve um movimento real de libertação, de independência brasileiro. Somos até hoje colonizados por culturas que não são as nossas. E ao mesmo tempo, somos babacas, arrogantes, donos da verdade. Eles, ao contrário, tiveram sucessivas batalhas para se libertar dos colonizadores. Desde as civilizações mais antigas como as incas e maias. Acho que essa é uma diferença fundamental entre nossas culturas. Isso lapidou o caráter dos povos latinoamericanos. Para o relatório da CIA o Brasil é o único país que aparece como expoente da América Latina no século XXI, porque será? Talvez porque boa parte dos que teorizam o pensamento científico, político, econômico e social de hoje sejam somente pensadores, intelectuais (ou intelectualóides?) que nunca estiveram em um front pela libertação de seu país. Temos desprezo por algo que não conhecemos. Em todos os canais brasileiros, os presidentes latinos são vistos como idiotas desequilibrados, com matérias que recebem recortes e edições favoráveis à imagem diminutiva que querem construir deles. Aqui, na Bolívia, vimos entrevistas na íntegra, sem cortes, de pessoas que para nós, nos pareceram muito lúcidas e, diferente dos políticos das terras tupiniquins, realmente comprometidas com os povos que representam. Pode-se até discutir o método, mas existe um componente de dignidade, força e respeitabilidade nestes líderes que não vejo mais em nenhum dos representantes brasileiros. Aliás, a maior pena sentida por nós foi justamente a ausência do nosso presidente nesta aliança, no abraço fraterno destes líderes latinos que se unem agora nesse eixo de força política pelo resgate da América Latina.

Juli de Souza
Encerrando o Diário de Viagem pela Bolívia
Viva La Revolucion Bolivariana
Hasta la vitória! Siempre!

2 comentários:

Paulo Almeida disse...

Oi!


Vou te dar um "furo": talvez o próximo presidente paraguaio seja Julio Cesar Romero (há boas chances, acredite).
Continuando: sabia que Bolívar, ao fim da vida, disse que a América Latina é um lugar de saída, e não para se viver? Comentei isso com meu pai no sábado e ele fez uma cara desolada...
Lendo seu texto imaginei o Juruna sendo o nosso presidente... ou o Paiakan.
E para terminar: aprendi mais sobre a Bolívia do que nas aulas de geografia. Realmente muito bom. Parabéns.

Flavio Costa disse...

Outro dia estava lendo um dado das Nações Unidas de 2006, que a Coca-Cola importa cerca de 120 toneladas ou 99%, por ano, de todas as folhas de coca comercializadas legalmente no mercado internacional...

Feed do Substantivu Commune