"Se não estás prevenido ante os meios de comunicação, te farão amar o opressor e odiar o oprimido" Malcom X

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A Uniban ainda, infelizmente

Update do post: o primeiro texto é a opinião de uma mulher, o segundo de  um homem. Assim a gente equilibra as coisas. E chega à mesma conclusão, claro.


Por Débora Diniz, em O Estado de S. Paulo: 


O urro ancestral da faculdade injuriada

Universitários que encurralaram a colega de vestido curto não eram delirantes: eram agressores


O caso não caberia nem em um folhetim vulgar, não fosse o YouTube denunciando a verdade. A "puta da faculdade" é uma história bizarra: uma mulher de 20 anos é vítima de humilhações. A razão foi um vestido rosa e curto que a fazia se sentir bonita. Sem ninguém saber muito bem como o delírio coletivo teve início, dezenas de pessoas passaram em coro a gritar "puta" e ameaçá-la de estupro. A saída foi esconder-se em uma sala, sob os urros de uma multidão enfurecida pela falta de decoro do vestido rosa. Além da escolta policial, um jaleco branco a protegeu da fúria agressiva dos colegas que não suportavam vê-la em traje tão provocante.

Colegas de faculdade, professores e policiais foram ouvidos sobre o caso. O fascínio compartilhado era o vestido rosa. Curto, insinuante, transparente foram alguns dos adjetivos utilizados pelos mais novos censores do vestuário da sociedade brasileira. "A roupa não era adequada para um ambiente escolar", foi a principal expressão da indignação moral causada pelo vestido rosa. Rapidamente um código de etiqueta sobre roupas e relações sociais dominou a análise sociológica sobre o incidente. Não se descreveu a histeria como um ato de violência, mas como uma reação causada pela surpresa do vestido naquele ambiente.

O que torna a história única é o absurdo dos fatos. Um vestido rosa curto desencadeia o delírio coletivo. E o delírio ocorreu nada menos do que em uma faculdade, o templo da razão e da sabedoria. Os delirantes não eram loucos internados em um manicômio à espera da medicação ou marujos recém-atracados em um cais após meses em alto-mar. Eram colegas de faculdade inconformados com um corpo insinuante coberto por um vestido rosa. Mas chamá-los de delirantes é encobrir a verdade. Não há loucura nesse caso, mas práticas violentas e intencionais. Esses jovens homens e mulheres são agressores. Eles não agrediram o vestido rosa, mas a mulher que o usava para ir à faculdade.

Não há justificativa moral possível para esse incidente. Ele é um caso claro de violência contra a mulher. Ao contrário do que os censores do vestuário possam alegar, não há nada de errado em usar um vestido rosa curto para ir às aulas de uma faculdade noturna. As mulheres são livres para escolher suas roupas, exibirem sua sensualidade e beleza. A adequação entre roupas e espaços é uma regra subjetiva de julgamento estético que denuncia classes e pertencimentos sociais. Não é um preceito ético sobre comportamentos ou práticas. Mas inverter a lógica da violência é a estratégia mais comum aos enredos da violência de gênero.

A multidão enfurecida não se descreve como algoz. Foi a jovem mulher insinuante quem teria provocado a reação da multidão. Nesse raciocínio enviesado, a multidão teria sido vítima da impertinência do vestido rosa. As imagens são grotescas: de um lado, uma mulher acuada foge da multidão que a persegue, e de outro, do lado de quem filma, dezenas de celulares registram a cena com a excitação de quem assiste a um espetáculo. Ninguém reage ao absurdo da perseguição ao vestido rosa. O fascínio pelo espetáculo aliena a todos que se escondem por trás das câmaras. Quem sabe a lente do celular os fez crer que não eram sujeitos ativos da violência, mas meros espectadores.

Pode causar ainda mais espanto o fato de que a multidão não tinha sexo. Homens e mulheres perseguiam o vestido rosa com fúria semelhante. Há mesmo quem conte que a confusão foi provocada por uma estudante. Mas isso não significa que a violência seja moralmente neutra quanto à desigualdade de gênero. É uma lógica machista a que alimenta sentimentos de indignação e ultraje por um vestido curto em uma mulher. A sociologia do vestuário é um recurso retórico para encobrir a real causa da violência - a opressão do corpo feminino. Não é o vestido rosa que incomoda a multidão, mas o vestido rosa em um corpo de mulher que não se submete ao puritanismo.

Não há nada que justifique o uso da violência para disciplinar as mulheres. Nem mesmo a situação hipotética de uma mulher sem roupas justificaria o caso. Mas parece que uma mulher em um vestido insinuante provoca mais fúria e indignação que a nudez. O vestido rosa seria o sinal da imoralidade feminina, ao passo que a nudez denunciaria a loucura. A verdade é que não há nem imoralidade, nem loucura. Há simplesmente uma sociedade desigual e que acredita disciplinar os corpos femininos pela violência. Nem que seja pela humilhação e pela vergonha de um vestido rosa.

*Antropóloga, professora da UnB e pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero 



Artigo de CONTARDO CALLIGARIS, da Folha Ilustrada de hoje:


A turba da Uniban


NA SEMANA passada, em São Bernardo, uma estudante de primeiro ano do curso noturno de turismo da Uniban (Universidade Bandeirante de São Paulo) foi para a faculdade pronta para encontrar seu namorado depois das aulas: estava de minivestido rosa, saltos altos, maquiagem -uniforme de balada.
O resultado foi que 700 alunos da Uniban saíram das salas de aula e se aglomeraram numa turba: xingaram, tocaram, fotografaram e filmaram a moça. Com seus celulares ligados na mão, como tochas levantadas, eles pareciam uma ralé do século 16 querendo tocar fogo numa perigosa bruxa.
A história acabou com a jovem estudante trancada na sala de sua turma, com a multidão pressionando, por porta e janelas, pedindo explicitamente que ela fosse entregue para ser estuprada. Alguns colegas, funcionários e professores conseguiram proteger a moça até a chegada da PM, que a tirou da escola sob escolta, mas não pôde evitar que sua saída fosse acompanhada pelo coro dos boçais escandindo: "Pu-ta, pu-ta, pu-ta".
Entre esses boçais, houve aqueles que explicaram o acontecido como um "justo" protesto contra a "inadequação" da roupa da colega. Difícil levá-los a sério, visto que uma boa metade deles saiu das salas de aula com seu chapéu cravado na cabeça.
Então, o que aconteceu? Para responder, demos uma volta pelos estádios de futebol ou pelas salas de estar das famílias na hora da transmissão de um jogo. Pois bem, nos estádios ou nas salas, todos (maiores ou menores) vocalizam sua opinião dos jogadores e da torcida do time adversário (assim como do árbitro, claro, sempre "vendido") de duas maneiras fundamentais: "veados" e "filhos da puta".
Esses insultos são invariavelmente escolhidos por serem, na opinião de ambas as torcidas, os que mais podem ferir os adversários. E o método da escolha é simples: a gente sempre acha que o pior insulto é o que mais nos ofenderia. Ou seja, "veados" e "filhos da puta" são os insultos que todos lançam porque são os que ninguém quer ouvir.
Cuidado: "veado", nesse caso, não significa genericamente homossexual. Tanto assim que os ditos "veados", por exemplo, são encorajados vivamente a pegar no sexo de quem os insulta ou a ficar de quatro para que possam ser "usados" por seus ofensores. "Veado", nesse insulto, está mais para "bichinha", "mulherzinha" ou, simplesmente, "mulher".
Quanto a "filho da puta", é óbvio que ninguém acredita que todas as mães da torcida adversa sejam profissionais do sexo. "Puta", nesse caso (assim como no coro da Uniban), significa mulher licenciosa, mulher que poderia (pasme!) gostar de sexo.
Os membros das torcidas e os 700 da Uniban descobrem assim um terreno comum: é o ódio do feminino -não das mulheres como gênero, mas do feminino, ou seja, da ideia de que as mulheres tenham ou possam ter um desejo próprio.
O estupro é, para essas turbas, o grande remédio: punitivo e corretivo. Como assim? Simples: uma mulher se aventura a desejar? Ela tem a impudência de "querer"? Pois vamos lhe lembrar que sexo, para ela, deve permanecer um sofrimento imposto, uma violência sofrida -nunca uma iniciativa ou um prazer.
A violência e o desprezo aplicados coletivamente pelo grupo só servem para esconder a insuficiência de cada um, se ele tivesse que responder ao desejo e às expectativas de uma parceira, em vez de lhe impor uma transa forçada.
Espero que o Ministério Público persiga os membros da turba da Uniban que incitaram ao estupro. Espero que a jovem estudante encontre um advogado que a ajude a exigir da própria Uniban (incapaz de garantir a segurança de seus alunos) todos os danos morais aos quais ela tem direito. E espero que, com isso, a Uniban se interrogue com urgência sobre como agir contra a ignorância e a vulnerabilidade aos piores efeitos grupais de 700 de seus estudantes. Uma sugestão, só para começar: que tal uma sessão de "Zorba, o Grego", com redação obrigatória no fim?
Agora, devo umas desculpas a todas as mulheres que militam ou militaram no feminismo. Ainda recentemente, pensei (e disse, numa entrevista) que, ao meu ver, o feminismo tinha chegado ao fim de sua tarefa histórica. Em particular, eu acreditava que, depois de 40 anos de luta feminista, ao menos um objetivo tivesse sido atingido: o reconhecimento pelos homens de que as mulheres (também) desejam. Pois é, os fatos provam que eu estava errado.

ccalligari@uol.com.br

Folha de S. Paulo, Ilustrada, São Paulo, quinta-feira, 05 de novembro de 2009

2 comentários:

Juliana Medeiros disse...

tudo se resume em uma parte do texto da Debora:
"A adequação entre roupas e espaços é uma regra subjetiva de julgamento estético que denuncia classes e pertencimentos sociais. Não é um preceito ético sobre comportamentos ou práticas"
Lembrando que até mesmo o conceito de ética e estética, pode ser definido de formas diferentes de acordo com determinadas culturas.
Essa semana aconteceu uma coisa engraçada comigo. estava no trabalho (na Rádio), com uma roupa legal, porém de calça jeans e um sapatinho preto social, além de um casaquinho por cima, já que estava um pouco frio, lencinho, essas coisas. Não estava com roupa social, estava digamos "esporte fino", o que para a rádio é suficiente. Pois bem, no final da tarde, alguém me chama para cobrir o encontro das entidades Pró-Cesare Battisti com o ministro Toffoli. Claro que se soubesse que ia para o STF naquele dia, tinha saído de casa com outra calça, mas fui assim mesmo, até porq não estava largada ou de tenis, coisa que aliás, adoro. E claro que fui barrada na portaria "por causa da calça jeans" (e uma deputada também foi "porq estava sem blazer", mas ela foi liberada mais rapidamente que eu, obviamente). E seguem minutos aguardando até que as seguranças ligassem no gabinete para ver se a assessoria dele liberava minha entrada. Mas o interessante dessa história foram os comentários da moça que faz a revista na porta. Eu comentava como era estranho que o congresso nao fizesse esse tipo de distinção e justamente ali na casa da JUSTIÇA... Mas ela dizia: "sabe o que é, os deputados e senadores sao importantes, mas os juízes e ministros, eles sao um pouco mais, eles decidem coisas mais importantes, eles estão acima, entende?" (!!) e "sabe, tem ministro que passa aqui pela gente e só depois de meses lembra de olhar na nossa direção e cumprimentar com a cabeça porq falar mesmo com a gente sao raros, só o Eros Grau, que eu me lembre... e ele tambem não faz questao de usar o elevador exclusivo, mas os outros, nossa, se estiver ocupado, ficam furiosos, eles nunca sobem com outras pessoas no elevador"...(!!) ..... Qnta ignorância!! Dela por falta de informação mesmo, mas deles por se sentirem "superiores" à esse ponto!
O Felipe, meu marido que é advogado (e atua nos tribunais superiores, portanto acostumado a encontrar ministro pra cima e pra baixo), tentou explicar pra moça que isso é um absurdo, uma convenção retrógrada. Contou que em SP, um juiz teve que responder porq nao permitiu que um trabalhador rural entrasse na sala de audiencia de chinelo, mesmo ele sendo parte e mesmo ele dizendo que nao possuía sapatos! Em seguida, alguem arrumou uma calça social e um sapato para ele calçar e isso, claro, foi considerado mais humilhante ainda para o coitado. Imagino o qnto deve ter sido terrível, ja que o próprio ambiente, muitas vezes, é constrangedor para pessoas como ele.

Juliana Medeiros disse...

Essas coisas tem que parar de ser usadas como ferramenta de hostilidade. Tudo isso é efêmero, passageiro, não significa nada. Nos preocupamos com isso e esquecemos do mais importante, como diz também o texto da Débora:
"inverter a lógica da violência é a estratégia mais comum aos enredos da violência de gênero"
Ou seja, o mais importante agora, é que as pessoas, os agressores, fossem de fato identificados e punidos, porque não existe absolutamente nada (mesmo!) que justifique o que aconteceu.
Fico pensando em como nos avaliamos assim, pelo que vestimos, pelo carro que temos, pelo cargo que ocupamos, isso é tão ridículo... aqui em Brasília infelizmente, noto que isso é muito mais nítido. Qndo as pessoas vem morar aqui, estranham isso num primeiro momento e depois acabam se adaptando e passando elas também à "medir" as pessoas assim. Aqui tem até segregação de espaços, quem "mora no Plano" tem mais "status" do que quem mora "nas satélites". Infinitamente ridículo, patético.. até porq muita gente que encontramos com ternos Armani dentro do Congresso, não valem nada e adquiriram a vestimenta à custa de práticas duvidosas.
No Rio de Janeiro as pessoas são mais libertas dessas coisas. Minha mae trabalha na UERJ e tá acostumada a ver as meninas de short e sandalia rasteira.. e naquele calor, só assim mesmo!
E, o pior, ainda há quem defenda as normas de vestuário como regra ou valor social. Sinceramente, não acredito nisso, a não ser nos momentos em que servem para definir coisas que de reais não têm nada. Como qndo as pessoas aqui olham um negro dirigindo um carrão e, se ele estiver de terno, pensam logo que ele "deve ser o motorista". Ou seja, dentro dessa "lógica" a menina de vestido rosa, só podia ser mesmo uma puta!
Qnta pobreza de espírito!

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