A grande revolta dos peões de Jirau
por Fábio Fujita, Revista Piauí, n.56
É durante a troca de turnos que a irritação costuma se transformar em exasperação no canteiro de obras da Usina Hidrelétrica de Jirau, em Rondônia. O núcleo do desconforto é o “Curral”, a pequena estação rodoviária de onde partem os ônibus para Porto Velho, a 130 quilômetros, cidade em que moram muitos dos operários.
Ali, no Curral, o cansaço dos que acabam de encerrar o expediente, as filas – e os espertinhos que tentam furá-las –, o empurra-empurra, a barulheira, a vontade de voltar para casa, a perspectiva do longo trajeto e o calor beirando os 40 graus se sobrepõem perigosamente.
Para piorar, os operários volta e meia acusam os motoristas de fazer corpo mole, de remanchar em partir. E os intimam aos gritos de “Vambora!”. Alguns motoristas não gostam de gritos, ainda mais de peões. Palavrões e trocas de xingamentos são frequentes.
Pouco depois das cinco da tarde da terça-feira, 15 de março, um desentendimento entre um trabalhador e um motorista não ficou só nas agressões verbais. Um operário que morava num alojamento do canteiro de obras quis entrar num ônibus para ir a Porto Velho. Mas somente quem mora na cidade tem esse direito. E o peão queria ir à capital resolver um problema pessoal. Não importa que não tivesse direito ao ônibus: ele decidiu que embarcaria e pronto, era uma situação emergencial, que abrissem a exceção.
O motorista não quis saber: regras existem para ser respeitadas. O peão, inconformado, atirou uma pedra que pegou no para-brisa do ônibus. O ambiente ferveu. Um grupo de motoristas cercou o peão e o atacou a socos e pontapés. Ele caiu, desmaiado. Foi a vez de outros peões reagirem e avançarem sobre os motoristas, que, amedrontados, correram. A excitação se espalhou pela rodoviária aos gritos de “É greve! É greve!”. O ônibus da discórdia foi o primeiro a ser incendiado.
A aproximação da noite não serenou os ânimos. No dia seguinte a greve adquiriu força e alojamentos foram
destruídos. À noite, imaginou-se que o conflito havia terminado. Na quinta-feira, capatazes conclamavam os peões para o trabalho quando um novo incidente estourou, dessa vez no refeitório.
Um operário de cabelos claros gritava “Greve! greve!” e conclamava os que estavam com uniformes a tirá-los. Como nem todos concordaram, houve discussões inflamadas. Homens da Polícia Militar pegaram o sujeito pelos cabelos e, aos sopapos, o jogaram num camburão. Um grupo de operários se aproximou e exigiu sua soltura. Os policiais se recusaram. “Não vão soltar? Então é fogo nos alojamentos!”, conclamaram os mais belicosos.
A polícia partiu para cima dos incendiários. Quando conseguiu reprimi-los, chamas subiram em outra instalação, ao longe. A insurreição se espalhou. Cientes de que as câmeras de segurança, espalhadas pelo canteiro, captavam tudo, trabalhadores amarraram suas camisas no rosto. Grupos entravam em alojamentos, juntavam colchões, punham fogo e saíam rapidamente.
Muitos operários, atarantados, permaneciam nos alojamentos até que o fogo se aproximasse deles. Então corriam, levando bolsas e sacolas. Alguns não conseguiram carregar nada. Barracos viravam cinzas em poucos minutos.
No final da manhã, com a expectativa da chegada de cinquenta ônibus, a convulsão se transferiu para a portaria do canteiro, onde boa parte do operariado se concentrou. Na dificuldade de identificar os incendiários dos que só queriam fugir, um batalhão de choque da polícia atacou a esmo, à base de balas de borracha, gás lacrimogêneo e spray de pimenta. Na correria, muitos dos que haviam conseguido sair com malas e sacolas dos alojamentos as perderam pelo caminho.
Com a carga policial e a confusão que se seguiu, começou a dispersão, a pé ou de carona, em carros e caminhões.
Muitos andaram até 12 quilômetros, rumo a Jaci Paraná ou ao distrito de Nova Mutum, e outros ficaram no Posto Pedrinhas, o mais próximo da saída de acesso ao canteiro. Mas, na BR-364, que vai a Porto Velho, um ônibus, um carro e pilhas de pneus foram queimados, bloqueando a estrada. Quem saiu do canteiro sem levar comida só se alimentou de noite.
No dia seguinte, sexta-feira, ainda havia centenas de operários espalhados pela BR. Cansados de andar, eles fizeram um novo bloqueio da pista por cerca de meia hora, na altura de Jaci Paraná. Na usina, sem alternativa, os últimos trabalhadores abandonaram os canteiros.
Terminou então a maior revolta operária no Brasil do século XXI. Havia 45 ônibus e quinze carros incendiados. Cem alojamentos incinerados ou depredados. Salas de cinema, de jogos e de televisão inutilizadas. Escritórios, posto de saúde, agência bancária, lanchonete, lan house e refeitório parcialmente destruídos.
A Usina de Jirau é a maior obra do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC do governo federal. Orçada em 12 bilhões de reais, até a explosão do conflito ela empregava 22 mil operários, dos quais metade morava no canteiro. Junto com a Usina de Santo Antônio, também em construção, ela forma o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira. Quando operarem em conjunto – a de Jirau tem previsão de começar em março de 2012 –, as duas barragens deverão faturar 8,5 milhões de reais por dia.
Logo que a revolta chegou ao noticiário, a Camargo Corrêa – construtora responsável pela obra e sócia do projeto –, que capitaneia o consórcio Energia Sustentável do Brasil, se apressou em dizer que não recebera nenhuma pauta de reivindicações. Altair Donizete Oliveira, vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Rondônia, admitiu que, realmente, não enviara um documento formal. “Mas uma semana antes, pedimos pelo telefone que a empresa nos liberasse para formarmos uma comissão de trabalhadores e fazermos uma assembléia”, disse ele. “Os trabalhadores estavam tensos.” Segundo Oliveira, a Camargo Corrêa não autorizou nem a comissão nem a assembléia.
Vários trabalhadores me disseram que é comum os admistradores não cumprirem o previamente acordado. A sensação generalizada é de que a empresa apostava que os operários não reclamariam os seus direitos – fosse pela burocracia que deveriam enfrentar, pelo temor de perder o emprego ou pela dificuldade em apresentar provas que sustentassem o seu pleito. Marcio Pedroza, ex-ajudante de manutenção, contou ter passado pela situação assim que foi contratado. Ele morava em Vilhena, no interior de Rondônia, trabalhava como auxiliar num shopping e recebia 555 reais de salário. Viu um cartaz que falava sobre vagas na usina, com salários de 800 reais. Foi a Jirau e se empregou. “Comecei a trabalhar e, quando fui ver no papel, estava 700 reais”, contou. “Não corri atrás para reclamar porque eu precisava do emprego.”
Outra história recorrente é sobre a sabotagem das horas extras. “Muita gente trabalhava de domingo a domingo e, quando chegava o pagamento, não vinham todas as horas”, disse Anderson, que trabalhava na terraplanagem (ele preferiu não ter o sobrenome revelado.) “A gente passava da hora do expediente, suava para ver se pegava um dinheirinho a mais, mas pagavam só o horário normal e algumas horazinhas. O resto a gente trabalha de graça para eles.”
Outras reclamações dizem respeito a dois benefícios, o de participação nos lucros e o conhecido como “Big Card”. A participação nos lucros, acordada com o sindicato, renderia cerca de 700 reais a cada trabalhador, mas nunca foi paga. Já o Big Card é um auxílio do tipo da cesta-básica. Só que, enquanto funcionários da Camargo Corrêa ganhavam 110 reais de Big Card, algumas empresas terceirizadas dela pagavam 350 reais. “Se eu ganho tanto, e você tem uma diferença de 240 reais no mesmo benefício, eu estou sendo prejudicado”, disse o porteiro Joaquim Lauro. “Então, a pessoa perde o interesse de trabalhar e, se ela puder dar um prejuízo na empresa, vai dar.”
Segundo o sindicato, o controle de faltas era feito, muitas vezes, na base dos humores do encarregado. “Se ele não vai com a cara do trabalhador, ele vai lá e inventa uma falta”, disse Donizete Oliveira. Aconteceu com Joaquim Lauro. “Vieram duas faltas no meu contracheque sem eu ter”, reclamou. A questão da assiduidade é fundamental para ganhar outro benefício, o 14º salário: só tem direito a ele quem não tem nenhuma falta durante todo o ano. Joaquim Lauro procurou o setor de recursos humanos para contestar os descontos indevidos. Assim que retornou, foi chamado à sala do chefe e acusado de se ausentar em horário de serviço para resolver assuntos pessoais. Foi também ameaçado de demissão por justa causa. “Falei que isso a gente ia ver, se ele teria poder para me mandar embora”, contou o porteiro.
Em Jirau há duas categorias de funcionários, instituídas segundo a cor dos uniformes. Os “amarelinhos” são os chefetes, os “encarregados”; os “verdes”, os peões. Marcio Pedroza disse que os amarelinhos ameaçavam os verdes de enviá-los para trabalhar numa área conhecida como Buracão, a mais quente das obras, que combinava o calor do solo com o trabalho a céu aberto. Quebrar pedra ali era tido como um dos piores serviços. “Quando o peão ia beber água, o encarregado reclamava: ‘Ih, esse aí não vai aguentar. Se não aguentar, pode pedir demissão.’ Falavam desse jeito”, disse Pedroza, que viu gente desmaiar no exercício da tarefa.
No alojamento dos encarregados, dormiam duas pessoas em cada quarto. No dos verdes, oito peões dividiam um cômodo. Além da diferença do conforto, Pedroza assegurou que alguns amarelinhos aproveitavam a distância do alojamento deles em relação ao dos peões para levar mulheres aos quartos, o que é proibido em todo o canteiro. “Mas escondido eles podiam”, disse. “Eles tinham até churrasqueira no alojamento. Mas no nosso a gente não podia nem levar fogãozinho a álcool, não podia fazer nenhum tipo de comida no alojamento. Eles podiam, e mandavam até os peões montar a churrasqueira.”
No refeitório, nem sempre os operários conseguiam comer. Com uma hora de folga para o almoço, e filas enormes, às vezes não dava tempo. “Eu vi um cara do meu lado desmaiar porque não conseguiu comer”, disse Anderson. Se o peão esquecesse o crachá, não comia. “O segurança via o sujeito todo suado, via que tinha acabado de trabalhar, e mesmo assim não liberava”, contou o soldador José Raimundo Leite.
Quem conseguia pegar seu bandejão não se considerava privilegiado. Anderson classificou a comida como “uma imundície”. “O arroz era duro, e tudo o que sobrava eles faziam uma misturada dentro de um panelão: frango, carne, pedaço de bucho, pescoço de galinha”, disse. “Você olhava aquilo e dava vontade de desistir.” A mesma comida às vezes era repetida por dois ou três dias seguidos. “Eu mesmo já passei mal, com dor no estômago, dor de cabeça”, contou Pedroza. “E aí tem outro problema, que é a área de saúde. O laboratório era longe, a gente tinha que andar 2 quilômetros para poder pegar uma pílula.”
Pedroza contou ter visto um capataz dar um tapa na cara de um peão, que tentara esconder uma laranja no bolso do uniforme para comer no alojamento, o que é proibido. Pedroza não concorda com o furto do colega. O problema são os pesos e medidas. “Ninguém podia pegar, mas os encarregados pegavam e piscavam para os seguranças.” No primeiro dia da revolta, o alojamento dos vigilantes foi o primeiro a ser incendiado.
No ambiente de trabalho, o alto risco para o trabalhador decorria do desvio de função. Se um operário é contratado como armador, mas demonstra habilidade no manuseio do martelete, por exemplo, ele pode ser desviado para a função. “Mas só pode ter acesso ao equipamento de proteção específico quem é contratado como marteleteiro”, explicou o sindicalista Oliveira. “Então, o trabalhador vai para o martelete, mas o almoxarifado não libera o equipamento de segurança para ele, porque é armador.” O dirigente sindical diz que houve três acidentes fatais em Jirau. O carpinteiro Giovani Rabelo informou que no canteiro “faltam luva, botina, óculos, protetor. Ninguém liga para nada. Vi gente que caiu de escada de 5 metros. O cara estava sem cinto de proteção”.
Com todos esses problemas, a tensão cresceu em Jirau. “Desde meses atrás já diziam: ‘Vai ter uma guerra aqui’”, disse Anderson. “A segurança patrimonial já identificava os ‘cabeceiras’ e mandava embora”, contou José Raimundo, referindo-se aos líderes em potencial. Donizete Oliveira usou uma metáfora para sintetizar o que houve: trancar um gato num quarto e cutucá-lo constantemente. “Não precisa nem feri-lo”, disse. “Ele vai pular e esbugalhar seu rosto. Porque ninguém, nem bicho, gosta de ser maltratado.” (A Camargo Corrêa não autorizou a entrada no canteiro de obras. Solicitei que um porta-voz da empresa falasse sobre a revolta e as denúncias dos trabalhadores. A empreiteira preferiu não designar ninguém para ser entrevistado.)
Ministra do Meio Ambiente entre 2003 e 2008, Marina Silva saiu do governo, entre outros motivos, devido às pressões da ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, para que apressasse a concessão de licenças ambientais que permitissem o início das obras em Jirau e em Santo Antônio.
Com o aumento do poder de Dilma, o cronograma do projeto foi remanejado, e o início da geração de energia em Jirau foi antecipado de 2013 para 2012. As consequências se fizeram sentir. Em novembro, a Justiça determinou um prazo de noventa dias para se regularizar a situação de 331 famílias ribeirinhas de Mutum Paraná – antigo distrito da cidade de Jaci Paraná, a mais próxima da usina –, inundado pelas águas da nova barragem. Uma ação civil pública constatou irregularidades no processo de remanejamento das famílias. Houve também denúncias de uso de força excessiva nos despejos feitos em Mutum Paraná.
A pressa em terminar a barragem fez com que os operários fossem instados a trabalhar mais. A rotatividade da mão de obra é alta, ali, porque muitos trabalhadores acabam demitidos dentro do período de experiência, em geral por produzirem aquém do esperado. Como as vagas não podem ficar ociosas, as contratações são rápidas, com pouco rigor na seleção.
Valério Soares, ex-auxiliar de assistência social, disse que muita gente que passava por seus cuidados apresentava um nível de instrução baixíssimo, quando não quadros de incapacidade psicológica. “Alguns eram até incapazes de dizer o próprio sobrenome”, disse, lembrando-se de situações em que auxiliava operários no preenchimento de fichas. “Algumas pessoas ali não conseguiam nem expressar o que precisavam.”
Porto Velho sempre foi, historicamente, forjada por ondas migratórias. A primeira, no ciclo da borracha, iniciado no final do século XIX, se estendeu até a Segunda Guerra. Nos anos 70, veio a fase dourada do garimpo, que durou até a década seguinte. Agora, há a migração em função das barragens. A irmã Maria Ozânia da Silva, coordenadora da Pastoral do Migrante de Rondônia, observa que a imagem do estado como eldorado ainda é propalada pelos governos local e federal. No seu entender, isso é ruim. “Os migrantes, tanto no início como até hoje, têm a visão de vir, tirar tudo o que Rondônia tem, enriquecer e voltar ao seu estado de origem”, disse.
Se o migrante tem a tendência de não criar vínculo com a terra desconhecida, que dirá quando as condições no ambiente de trabalho são ruins? “Quando eles chegam ao canteiro, ao ver o campinho de futebol, a academia, as salas de jogos, eles têm uma ilusão”, disse a irmã Maria Ozânia. “Mas por detrás disso há mecanismos para impedir as relações verdadeiras.” Ela falou da dificuldade da Pastoral em estabelecer uma relação duradoura com os migrantes em Jirau, em função das constantes trocas de turno. “A gente vai numa quinzena, tem um grupo. Vai na outra, e aquele trabalhador já está em outro turno”, exemplificou. “As grandes empresas querem que as pessoas produzam. Não olham a pessoa como um ser humano, que tem sonhos, projetos, dores, saudades.”
Foram registrados em Jirau dois casos em que os operários viviam em situaçãoanáloga à escravidão, de acordo com a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Rondônia. No primeiro, de 2009, 38 trabalhadores a serviço da empresa BS Construtora, terceirizada da Camargo Corrêa, foram encontrados em casas precárias, na cidade de Jaci Paraná, com instalações sanitárias degradantes. “Não havia nem água para o pessoal beber”, explicou Juscelino José Durgo dos Santos, auditor fiscal do trabalho na Superintendência. “Tinham que tirar água de um poço que ficava próximo a uma fossa. Usavam aquela água para tudo: para consumo, para tomar banho, para lavar utensílios domésticos e roupas.”
O segundo caso se deu no ano passado, quando um grupo de trabalhadores do Nordeste foi encontrado em situação similar. A denúncia partiu de peões que conseguiram fugir e, de carona, chegaram a Porto Velho, onde procuraram a Superintendência. Pelos relatos, as irregularidades começaram já no aliciamento. “Os trabalhadores vendiam seus bens, vendiam tudo, para pagar os ‘gatos’ [aliciadores] e vir para cá, sob a condição de que os salários seriam maravilhosos”, disse Juscelino dos Santos.
Casos desse tipo envolvem migrantes: para o trabalhador local, o conhecimento da região facilita o deslocamento e a busca de ajuda. Na Usina de Santo Antônio não houve registro de situações degradantes. Colabora para isso o fato de a maior parte da mão de obra empregada ser de Porto Velho, além de haver poucos operários alojados no canteiro – cerca de 2 mil. Outro aspecto favorável a Santo Antônio é sua maior proximidade da capital rondoniense. “Qualquer problema mais grave que aconteça, as pessoas podem vir caminhando para a cidade”, explicou o auditor. “É uma situação totalmente diferente de Jirau, que está a 130 quilômetros de Porto Velho. Como eles não têm a quem recorrer, ficam lá, suportando as situações.”
Se na esteira da migração para Jirauhá grupos mais facilmente manipuláveis, também há os malandros, e até
mesmo bandidos. A irmã Maria Ozânia, da Pastoral, diz ouvir dos migrantes que, a partir do momento em que ficou evidenciada a corrida para a antecipação na entrega da obra, os problemas de violência em Jirau cresceram. Definitivamente, passou-se a contratar “qualquer um”, às pressas, sem critério. Donizete Oliveira, do sindicato, conta ter topado com um grupo de vinte homens, em Jaci Paraná, que, devido ao excesso de álcool, simplesmente abandonaram o trabalho.
Muitas vezes, o álcool é a única válvula de escape em ajuntamento de migrantes que trabalham intensamente, em meio a estranhos. Como a circulação de bebida é proibida no canteiro, muitos recorrem às mais inventivas ideias para burlar a fiscalização. Nesses canais, circulam também drogas ilícitas.
O carpinteiro Giovani é testemunha disso. “A droga rola solta, não tem nem o que esconder”, disse. “A vigilância sabe, mas não dá conta.” Marcio Pedroza lembrou o caso de um falso pastor, que trabalhava durante o dia e fingia pregar durante a noite, próximo ao alojamento dele, para poder traficar. “A segurança queria que os peões entregassem o traficante”, disse. “Só que muitos tinham medo de que a pessoa que estava vendendo droga os matasse.”
O soldador José Raimundo contou que a droga passava pela vigilância com mais facilidade do que o álcool. “Não sei quais eram as drogas mais comuns, porque eu não uso, não conheço essas coisas. Mas sei que tinha maconha, porque a gente sentia aquele cheiro”, explica. Conforme a proximidade dos seguranças, o consumo podia ocorrer nos próprios alojamentos. Crack e cocaína foram citadas pelos peões como as drogas mais difundidas no canteiro.
“No meu alojamento, eram mais senhores de idade, e tinha dois crentes, então era tudo tranquilo”, disse José
Raimundo. “Mas um conhecido meu tinha companheiros de quarto que roubavam dos colegas para trocar por droga. Roubavam qualquer coisa, até roupa.” A orientação da empresa para os casos de furto é que a vítima vá a Porto Velho fazer um boletim de ocorrência – ou seja, perder horas de trabalho e arcar com as despesas da viagem.
Anderson passou por apuros no dormitório. No primeiro onde o puseram, teve que conviver com companheiros arruaceiros, que viviam brigando. Ao mudar de quarto, novo azar. “Estavam em quatro e não deixaram eu ficar. Não foram com a minha cara”, recordou. Perguntei se eles tinham poder de veto. Anderson, um homem franzino, que não mede mais de 1,65 metro de altura, hesitou alguns segundos antes de admitir: “Não dá para contrariar a maioria. Já mataram gente ali dentro mesmo, em briga de peão. Meteram a faca no peão deitado na cama dele. A peãozada toda sabe dessas coisas, mas dentro da obra tudo se abafa.”
Certa vez, a Pastoral do Migrante foi contatada pelo telefone por um padre do Maranhão. Ele queria ajuda para localizar um jovem que partira para trabalhar em Jirau. A mãe do rapaz estava desesperada porque perdera contato com o filho. Irmã Maria Ozânia descobriu que ele se envolvera com drogas, roubara colegas de alojamento e fora demitido da usina. Mas ela nunca chegou a encontrá-lo. Tempos depois, o mesmo padre que fizera o contato voltou a ligar para ela, e contou que o cadáver do jovem acabara de chegar ao Maranhão. Depois de sair de Jirau, ele esteve em Jaci Paraná, como condutor de mototáxi – que, na verdade, já mascarava a atuação como traficante. Acabou assassinado.
O coronel Antônio Carlos Thomaz-zoni, subcomandante-geral da Polícia Militar de Rondônia, considera que as autoridades locais, de uma forma geral, não se prepararam devidamente para fazer frente ao impacto dos projetos de Jirau e Santo Antônio. “Quando essas obras foram planejadas, eu não tinha noção de que ia ter uma migração tão grande”, ele disse, definindo o canteiro de Jirau como uma “minicidade”.
“Ali tem mais gente do que metade dos meus municípios e distritos do estado de Rondônia”, continuou. “Então, mesmo sendo proibido, entra bebida, entra droga. Há todo um problema de segurança pública por causa disso.” O surgimento da minicidade não foi suficiente para aumentar o efetivo policial. Thomazzoni, gaúcho, chegou a Porto Velho em 1988. A população do estado era então de 1 milhão de pessoas e o efetivo de policiais, de 4,8 mil homens: proporção de um para 208 pessoas. Hoje, essa relação está pior: um policial para 285 habitantes. “Não tivemos um acréscimo de nem mil homens, em 23 anos”, disse Thomazzoni.
Reflexo disso é que, no segundo dia de conflitos, 16 de março, tropas do interior de Rondônia foram convocadas para se juntar ao destacamento de Porto Velho, que já estava no canteiro. Depois, chegaram outros 100 homens da Força Nacional de Segurança, a pedido do governador Confúcio Moura.
Na minicidade de Jirau, até os conflitos de março, viviam 22 mil pessoas, de óbvia predominância masculina,
oriundas de diversos pontos do Brasil, das quais mais da metade não apenas trabalhando, mas vivendo no canteiro de obras. No canteiro, porém, a ordem era mantida tão somente pela segurança patrimonial da Camargo Corrêa, que não é armada. Nos relatos dos trabalhadores, brigas e acertos de contas são bastante comuns.
Marcio Pedroza citou o caso de um peão que perseguia um travesti para estuprá-lo. O travesti reagiu com uma facada no agressor. “Os outros peões começaram a gritar”, disse. “O meu alojamento era bem pertinho, e fomos lá olhar: o cara no chão, sangrando.” Pedroza diz que o peão teria morrido pouco depois, ao chegar à portaria do canteiro em busca de ajuda. “Lá não tem pronto-socorro de emergência. Se a pessoa pegar um tiro, uma facada, não tem como tratar lá dentro.”
O aumento da criminalidade em Rondônia, desde que as obras das usinas começaram, no segundo semestre de 2008, está nos números. Só em Porto Velho, nos dois últimos anos, Rondônia ficou em quinto lugar no ranking estadual de homicídios dolosos para 100 mil habitantes. Irmã Maria Ozânia conta que, no ano passado, soube que, no Instituto Médico Legal de Porto Velho, havia cinco corpos de trabalhadores de Jirau para serem reconhecidos. Teriam sido mortos na cidade: depois de bebedeira, envolveram-se em brigas fatais.
“Fui verificar e não eram só cinco: eram 35 corpos”, ela disse. Para o subcomandante Thomazzoni, o aumento da violência tem uma explicação lógica: “Como aumentou significativamente a população, cresceu todo tipo de crime.”
Na noite do dia 15 de março, depois que os primeiros ônibus foram incendiados e o canteiro de obras de Jirau virou uma terra de ninguém, houve ao menos uma tentativa de estupro, segundo Francisco das Chagas Batista da Costa, o Chaguinha, secretário-geral do sindicato.
Assim que a delegação do sindicato chegou ao canteiro, para tentar uma intermediação com os revoltosos,
Chaguinha foi abordado por uma mulher, que o avisou sobre uma colega que ficara para trás, arrastada por um grupo de homens. O sindicalista seguiu as indicações passadas pela mulher e entrou de carro no canteiro. Logo ele topou com a moça, cercada e com as roupas rasgadas.
“Eram mais de trinta homens encapuzados, contando os que estavam sentados numa pedra, como se fossem uma plateia”, relata Chaguinha. Ele disse ter negociado com os agressores com base na lei dos bandidos. “Vocês sabem que na cadeia existe uma lei: estuprador caiu lá dentro é fim de carreira”, disse ele ao grupo. “Lá vão querer fazer com vocês a mesma coisa que vocês estão querendo fazer com essa jovem.” A moça foi solta e Chaguinha a levou ao encontro da amiga, que aguardava num posto de gasolina. Ela estava em crise nervosa, e só pedia para sair dali. “Disse que nunca mais poria os pés em Jirau”, falou o sindicalista. Na Delegacia Especializada em Defesa da Mulher e da Família, em Porto Velho, não foi registrada queixa.
No Jornal Nacional, William Bonner anunciou a revolta da seguinte forma: “Cerca de 8 mil trabalhadores foram retirados do canteiro de obras da Usina Hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, depois de atos de vandalismo.” Num protesto realizado por trabalhadores da usina, nas ruas de Porto Velho, em 5 de abril, uma faixa respondia: “Vandalismo é a maneira com que são tratados os trabalhadores no canteiro de obras.”
No mês passado, Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, antecipou-se à Camargo Corrêa e anunciou a demissão de 4 miltrabalhadores de Jirau. Argumentou que a empreiteira fizera contratações em excesso. Em sua coluna na Folha de S.Paulo, Elio Gaspari escreveu que “aquilo que durante a campanha eleitoral era crescimento do emprego virou ‘contratação desenfreada’”. E ele continuou: “O assunto foi tratado com o silêncio da floresta porque as obras estão no mato e os trabalhadores são peões. Se as demissões acontecessem numa grande cidade, degolando numa categoria com melhores salários e algum ativismo político, o barulho seria enorme.”
Anderson acabou demitido em abril, pouco depois da retomada parcial das obras, no dia 11. “Falaram que eu estava na revolta, que tinham fotos e filmagem”, ele me disse. Anderson garante que saiu do canteiro assim que os incidentes começaram, logo no fim da tarde de 15 de março, e refugiou-se em Nova Mutum. Garante que, além de não ter participado dos tumultos, não faltou um dia ao serviço, nos oito meses em que ficou longe da família – ele é de Belém do Pará – trabalhando em Jirau. Tanto que integrou as equipes de limpeza das cinzas e destroços do pós-rebelião. Em benefício do crescimento acelerado da nação emergente, há quem precise fazer o trabalho sujo. E, uma vez feito, sair de cena.