O texto abaixo foi tirado do arquivo de 2002 do Observatório da Imprensa. A idéia é "acionar" velhas lembranças. Nesse sentido a internet se tornou a oitava maravilha do mundo, na minha humilde opinião, claro. Através dela é possível encontrar informações de todos os tipos. Claro, é importante "filtrar" bem tudo que se encontra. No caso abaixo, o relato é verídico até porque foi noticiado por toda a imprensa do país, na época. Acho que o espantoso, afinal, é que histórias como essas vão e vêm e nada, simplesmente nada acontece. Em parte em função da memória dos cidadãos que são bombardeados todos os dias com as últimas notícias e não têm mais lugar no cérebro para tanta informação. Na análise do Luiz Martins há vários personagens. Muitos eu conheço de perto e de alguns prefiro distância. Mas, uma pessoa acho que merece ser lembrada dentre tantos personagens, o ex-presidente dos Diários Associados, jornalista Paulo Cabral cuja história de vida se confunde com a própria história dos Diários Associados e do Correio Braziliense.
Luiz Martins*
Na tarde de sexta-feira (25/10/02), dois dias antes da votação em segundo turno para presidência da República e governos estaduais, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por cinco votos a zero, concluiu que não competia à Justiça Eleitoral exercer censura prévia à imprensa escrita. Dessa forma, o TSE interrompeu a volta da censura às redações, que vinha acontecendo por meio de liminares do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) que proibiam a divulgação de denúncias consideradas segredo de justiça.
Na noite da mesma sexta-feira, um advogado do governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, ainda tentou reproduzir a mesma estratégia da "censura togada" junto à Justiça comum, para a qual o TSE havia remetido a competência no que se refere à imprensa escrita.
Mesmo fora do expediente regulamentar, o juiz Carlos Eduardo dos Santos, da 1ª Vara da Justiça Criminal do Distrito Federal, recebeu o advogado de Roriz mas negou-se a acatar o pedido de ação cautelar para que o Correio Braziliense não publicasse a íntegra das fitas de gravações feitas pela Polícia Federal, por ordem da Justiça e a pedido do Ministério Público – possibilidade que passara a existir, legalmente.
O jornal podia, de fato, ter feito a publicação de todos os conteúdos das gravações e até chegou a ensaiar uma edição contendo um caderno para tais denúncias, mas preferiu publicar, na edição de sábado (26), trechos de uma nova gravação, desta vez de uma fita obtida pelo procurador da República Luiz Francisco de Souza contendo diálogos que sugerem que o governador Roriz é sócio dos irmãos Passos na grilagem de 221 hectares entre as QIs 27 e 29, do Lago Sul, próxima a terceira ponte. A edição de sábado trouxe uma página inteira sobre o assunto, incluindo um facsímile do ofício assinado por Luiz Francisco, encaminhado ao procurador-geral da República Geraldo Brindeiro, com "notícia crime" contra Roriz.
"Liberdade de opção"
Na nova conversa incriminadora, o advogado Salomão Herculano Szervinsk (recentemente preso e solto) conversa com o topógrafo Vinício Jadiskcke Tasso (foragido):
Salomão – Você não falou que Roriz era sócio?
Vinício – Sim.
Salomão – Eles estão derrubando tudo... tudo, tudo, tudo [referência a fiscais da Terracap].
Vinício – Aonde?
Salomão – 29.
O ofício é concluído com a solicitação para que Geraldo Brindeiro requeira a abertura de inquérito no Superior Tribunal de Justiça para investigar os fatos narrados, entre eles o envolvimento de Roriz com a grilagem da referida área, denominada "Mansões Chácaras do Lago".
A decisão do TSE foi adotada em resposta a uma ação cautelar que havia sido protocolada pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal, solicitando a interrupção da nova forma de censura. Tendo como relator o ministro Sepúlveda Pertence, o pedido foi deferido, mas nos termos de que tanto a Constituição quanto a Lei Eleitoral (nº 9.504) tratam de maneira distinta os meios audiovisuais (que demandam concessão pública do Estado) da imprensa escrita – esta, fora da competência da Justiça Eleitoral. Ou seja, desembargadores não poderiam continuar expedindo liminares de censura à imprensa, até mesmo porque a Constituição federal em vigor baniu a censura.
A ação cautelar não só foi aprovada por unanimidade como também foi elogiada pelo ministro Nelson Jobim. Ele ressaltou que a entidade trabalhista estava cumprindo o seu dever, com base no Art. 8o (Inciso III) da Constituição, que assim prescreve: "Ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas".
De acordo com nota divulgada pelo TSE, caso o Correio Braziliense ou outros jornais e revistas resolvam publicar a gravação da conversa telefônica entre Roriz e Pedro Passos, acusado de grilagem de terras no Distrito Federal, esses veículos poderão vir a arcar com as conseqüências na área penal, já que as fitas estão sob segredo de justiça na 1ª Vara Criminal de Brasília.
A divulgação do teor das gravações no rádio e na televisão, inclusive na propaganda gratuita, conforme a nota do Tribunal, continua proibida. Ao defender a liberdade de informação e expressão consagrada na Constituição, o ministro-relator Sepúlveda Pertence ressaltou que a censura prévia é impensável. Em seu voto, a ministra Ellen Gracie observou que a Lei Eleitoral prevê o pagamento de multa para os excessos que vierem a ser cometidos pela imprensa escrita, e ainda que o leitor tem liberdade para optar pela linha editorial que ele quer ler. Também o ministro Nelson Jobim manifestou-se no sentido de que a publicação de gravação telefônica não é matéria a ser examinada na área eleitoral.
Desafio de Roriz
Em seu último programa eleitoral, sob o impacto das repercussões em todo o país da censura que vinha sendo exercida a seu pedido, o candidato do PMDB Joaquim Roriz reagiu energicamente, desafiando o seu opositor, Geraldo Magela (PT), a liberar a publicação das gravações que o Jornal de Brasília não pôde publicar, igualmente por força de liminares, desta feita, a pedido do PT.
Limitações semelhantes também foram impostas ao Jornal da Comunidade, publicação pró-Roriz que sai duas vezes por semana com tiragem acima de cem mil exemplares, distribuídos gratuitamente. Também o novato diário Tribuna do Brasil, ferrenho aliado de Roriz, vinha sendo alvo das liminares.
O Jornal da Comunidade chegou a sofrer uma arbitrariedade: às 21h40m da quinta-feira (24/10), um oficial de justiça, acompanhado de soldados da PM, entrou nas instalações do JC e, por meia hora, procurou por uma suposta publicação com acusações a Gerado Magela. Nada foi encontrado. Ao que tudo indica, foram ao local errado, pois um dossiê divulgado pelo deputado distrital reeleito Tadeu Filipelli (PMDB) havia chegado não ao JC, mas ao Jornal de Brasília – que publicou, na edição do dia seguinte, cópias de documentos acerca do suposto
enriquecimento ilícito de Magela.
O Correio Braziliense, portanto, não foi o único alvo da "censura togada", mas tão-somente o caso de maior visibilidade e de maior repercussão. A interrupção dos trabalhos dos editores do Correio por parte do oficial de justiça e do advogado de Roriz provocou muita indignação na cidade, no meio jornalístico e também fora dele. Um grupo de manifestantes chegou ficar de plantão na noite de quinta-feira (24/10) com a intenção de impedir novas investidas dos "censores", mas estes acabaram não comparecendo. Na sexta-feira, houve pela cidade manifestações e um ato público na Universidade de Brasília, com a presença de professores, estudantes, representantes de várias entidades sindicais e políticos, entre estes o candidato derrotado do PSB ao Governo do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg, e a deputada distrital mais votada na última eleição, Arlete Sampaio. Eles e vários outros oradores arrancaram aplausos quando conclamaram os presentes a organizar uma cruzada em defesa da liberdade de imprensa.
Na tarde de sexta-feira, antes mesmo da decisão do TSE, 240 dos 244 repórteres e editores do Correio Braziliense assinaram uma Carta Aberta, que ocupou toda a página de Opinião da edição de sábado e teve como ilustração uma arte mostrando um rosto amordaçado. No documento, praticamente toda a redação do Correio solicita que o projeto editorial do jornal não seja interrompido, lembra o esforço que a Redação teve de enfrentar para anular "a promiscuidade das amizades aduladoras, muitas vezes mescladas com dinheiros ou cargos", e pede, em nome dos quase três mil leitores que mantiveram contato com a redação do Correio nos dias 24 e 25 de outubro, que "o projeto editorial tão premiado e aplaudido continue" (veja a íntegra da carta aberta nesta rubrica).
Já na tarde do dia 23, ao saberem que Paulo Cabral e Ricardo Noblat estavam demissionários, os repórteres do Correio haviam realizado uma assembléia quando uma proposta de paralisação foi aplaudida; mas uma contraproposta, a de realização sucessiva de edições especiais até 1º de novembro, data marcada para o afastamento dos dois chefes, saiu vencedora. As edições especiais não se caracterizaram como um todo, mas em parte, com a publicação de três textos-manifesto (incluindo a carta aberta), além de ilustrações das páginas políticas com tarjas pretas, contendo trechos de manifestações de autoridades e líderes de entidades civis e sindicais.
No dia 25, a primeira página do Correio trouxe uma única frase como manchete: "É proibido proibir", pichação nos muros de Paris em maio de 1968, utilizada por Caetano Veloso numa composição e citada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello, uma das personalidades da República que se pronunciaram contra a volta da censura. Segundo o texto "Liberdade para informar" [veja íntegra na rubrica Entre Aspas], o jornal recebeu milhares de manifestações de leitores, boa parte delas ameaçando o cancelamento de assinaturas. Numerosos desses e-mails foram publicados como ilustração da primeira página. A mesma edição trouxe um outro texto-manifesto, intitulado "Um jornal não se cala". A edição anterior havia republicado em página inteira o texto "Para que serve um jornal", um manifesto de 1995, em resposta ao boicote proposto ao Correio por Roriz, durante um comício.
Marca registrada
Em Brasília, a marca registrada deste último pleito foram os grampos. Desta vez, a realização foi dos arapongas, tanto aqueles que agiram no estrito cumprimento do dever policial quanto os chantagistas, que guardaram durante anos centenas de fitas como tesouros a serem abertos nos momentos mais estratégicos.
O Correio Braziliense foi agraciado tanto com gravações feitas pela Polícia Federal quanto com fitas do grileiro Márcio Passos. O Jornal de Brasília, por sua vez, foi destinatário de várias fitas e dossiês supostamente comprometedores para o candidato Geraldo Magela. Entre outros "documentos" publicados pelo JBr, duas certidões emitidas pela Terracap (a estatal que gerencia as terras públicas do Distrito Federal) davam conta de que Geraldo Magela em duas vezes se identificou como "jornalista" – e não bancário –, tendo, assim, cometido peculato. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal chegou a tentar, em vão, obter um esclarecimento do candidato, já que jornalista é a sua esposa, e não ele. Assessores do PT disseram tratar-se de um erro de quem havia lavrado as tais certidões, pois Magela, de fato, nunca foi jornalista. Não ficou claro, entretanto, que tipo de vantagem Magela iria desfrutar identificando-se num documento cartorial como jornalista e não como bancário.
Em várias edições, o Jornal de Brasília trouxe em primeira página o carimbo-logomarca identificador da censura. Vejamos alguns exemplos das advertências do JBr aos seus leitores:
"A pedido do PT, não podemos publicar reportagens sobre recebimento de dinheiro para regularização de condomínios".
"A pedido do PMDB, não podemos divulgar fitas de Pedro Passos em conversa com autoridades".
"A pedido do PT, não podemos publicar as fitas em que o grileiro Germano Carlos faz acusações a Magela".
"A pedido do PT, não podemos divulgar conversas de Passos com Hermes de Paula, ex-secretário de Obras de Cristovam".
Tanto no caso do Correio Braziliense quanto do Jornal de Brasília, a imprensa usou o escudo do sigilo da fonte enquanto os candidatos alegaram segredo de justiça. Dia a dia, seus advogados estiveram atuantes tanto para a obtenção de sucessivos direitos de resposta, quanto para a aprovação das liminares que impediam as "suítes" dos escândalos, pois a censura era exercida de forma a impedir a continuidade das revelações, já que nem sempre chegava ao seu conhecimento o que estava em poder dos editores.
Em Brasília, as redações começavam a se acostumar com a chegada, toda as noite, por volta das 22 horas, de um oficial de justiça, até que numa delas Adolfo Marques da Costa, advogado de Roriz, foi junto. Circulara um boato de que a redação do Correio, indignada com a anunciada saída de Paulo Cabral e Ricardo Noblat, iria publicar a íntegra de todas as fitas. O advogado resolveu, então, fazer companhia ao oficial de justiça Ricardo Yoshida, designado pelo desembargador Jirair Meguerian, tendo ficado na redação do Correio das 22h às 2h do dia seguinte, vistoriando cada página a ser impressa e, num momento de dúvida, chegou a telefonar para um superior acerca de um determinado conteúdo.
Reconstituía, assim, o cenário antiquado da censura prévia dos tempos da ditadura, mas tropeçou num detalhe. Virou, ele próprio, objeto de reportagem. Foi fotografado e filmado, tendo aparecido até no Jornal Nacional. Entrou para a história da pior forma. O que era para ser apenas um excesso de subserviência virou documento, lamentável registro histórico, que ninguém supunha viesse a se repetir – nem mesmo como farsa, como diria Marx. Segundo revelaria no sábado (26) matéria do Correio, Marques chorou de desgosto pois Roriz o deixou sozinho. Em declarações à imprensa, o candidato afirmou que jamais partiram dele os pedidos para que a imprensa fosse censurada. O advogado do governador emocionou-se ao receber numerosos telefonemas de colegas seus, em solidariedade.
Pressões do leitorado
A edição do Correio Braziliense da quinta-feira, (24/10), estampando em manchete garrafal sobre fundo escuro a denúncia do arbítrio – "Correio é censurado a pedido de Roriz" – causou impacto tanto em Brasília quanto no resto do país. Somava-se a este fato dramático a notícia de que, no dia anterior, numa reunião dos 19 condôminos dos Diários Associados, 13 deles votaram uma moção de censura ao patriarca do clube, o jornalista Paulo Cabral, 80 anos, que havia prometido publicamente – em nota de primeira página do mesmo Correio, semanas antes –, destituir Ari Cunha da vice-presidência daquele egrégio de herdeiros do império deixado por Assis Chateaubriand.
Destoando absolutamente da linha editorial em vigor no Correio, Ari Cunha, um dos fundadores do jornal, em 21 de abril de 1960, havia aparecido em fotos e em áudio na propaganda eleitoral de Joaquim Roriz fazendo acusações ao diretor de Redação do Correio e à sua mulher, Rebeca, que teriam, segundo ele, ao tempo do governo Cristovam Buarque (PT), sido premiados com superfaturamento de serviços de "comunicação". Esta "traição" de Ari Cunha renderia ao jornal cinco direitos de resposta, alguns deles a cargo do próprio Paulo Cabral, quando foi eloqüente ao garantir que jamais o jornal que se inaugurou com a nova capital brasileira se renderia a intimações.
Ari Cunha articulou-se nos bastidores, deu a volta por cima, e, no final da manhã de quarta-feira (23), surpreendeu Paulo Cabral com uma derrota tão humilhante que o velho condômino preferiu renunciar, deixando para trás 22 anos de comando dos Diários Associados e mais alguns na presidência do próprio Correio Braziliense. Roriz foi um dos primeiros a saber da virada imposta por Cunha, tanto que já no almoço comemorou o que havia profetizado horas antes num comício para 500 fiéis da Assembléia de Deus, reunidos numa igreja situada numa das maiores invasões de Brasília, a Estrutural. "Deus tarda, mas não falta", agradeceu, contrito, segundo reportaria o Correio, que conseguiu fazer a matéria embora os repórteres tenham sido expulsos por simpatizantes de Roriz.
A Capital Federal, com repercussões em todo o país, amanheceu a quinta-feira (24) diante de dois abalos. Além da acintosa censura prévia sofrida pelo mais antigo e mais importante jornal da cidade, o prenúncio era de que também o chamado "Projeto Correio" estava indo por água abaixo. Junto com Paulo Cabral caía Ricardo Noblat e, com eles, os esteios de oitos anos de implantação de uma política editorial e de um lento trabalho de mudança da imagem do Correio, que logrou superar o estigma de jornal "chapa branca" e passar a ser conhecido como um dos jornais graficamente mais bonitos do país, tendo conquistado mais de uma centena de prêmios, a maior parte deles nesse período de reforma, fase em que a coluna política de Ari Cunha ("Visto, lido e ouvido") foi extinta e o colunista social Gilberto Amaral, demitido.
Até à noite de sexta (25), a perspectiva ainda era da efetivação do afastamento de Cabral e Noblat. Entretanto, já havia sinais de que a crise poderia ser superada. Havia pressões tanto da redação quanto de milhares de leitores e de numerosas entidades civis e sindicais – algumas delas literalmente ameaçando invadir o jornal e de lá não sair até enquanto os dois jornalistas não voltassem a assumir suas funções.
(*) Professor da UnB, coordenador do SOS-Imprensa; colaborou Fernando Paulino, professor do IESB. Fonte: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/ipub301020022.htm
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