Quando eu fiz 15 anos, morávamos eu, minha mãe e minha irmã no Humaitá, no Rio de Janeiro. Nesse bairro, havia (acho que ainda existe) uma linha de ônibus, que pegávamos em um ponto antes de cruzar o túnel para a Zona Sul. Esse ônibus, irônicamente o "171", virou até piada de carioca. Todo mundo sabia que, ao pegar o 171, alguns assaltantes, em horários incertos e com idades e métodos diversos, aproveitavam a travessia do túnel para assaltar os passageiros e descer na próxima parada que, aliás, era um ponto antes do Posto da PM. Geralmente isso acontecia quando havia poucas pessoas, ou seja, todo mundo sentado, para eles circularem à vontade no corredor do ônibus.
Por causa disso, dessa espécie de "tradição", os passageiros que já conheciam os meliantes que ganhavam a vida (como todo trabalhador, batendo ponto) na mesma linha, se preparavam deixando objetos de valor o mais escondido possível e, velho macete, deixando uns trocadinhos à vista. Tirava a carteira da bolsa e colocava no bolso de trás da calça, colocava o relógio na cueca, cada um tinha uma estratégia. Eu me lembro que, adolescente, costumava esconder meu rico dinheirinho dentro da meia, na lateral do tênis. E até que funcionava. Nunca me roubaram.
Um dia, distraídas que estávamos as três com inúmeros problemas que estávamos enfrentando na época, pegamos o famigerado 171 sem prestar atenção nessas regrinhas básicas de prevenção. Ocorre que eu tinha acabado de fazer os tais 15 anos e minha mãe passava por um aperto dos grandes e estava especialmente emocionada no período por não ter podido me dar um baile de aniversário. Ela sabe que eu não dava a menor bola pra isso, até porque eu já era meio subversiva e "esse negócio de baile de 15 anos era muito brega". Só que se ela tivesse condições de fazer, eu tinha topado, tamanha a importância que ela dava pra coisa. Mas não rolou. Meu presente então de 15 anos foi um relógio espetacular, moderníssimo, cheio de funções, meio esportivo, que eu andava querendo muito. E foi com esse pequeno "tesouro" que entrei no 171.
Assim que sentamos, quase que instantâneamente, minha mãe deu um suspirinho assim tipo: "ai, esqueci... ixi, acho que lá vem um assaltante". Ou seja, mal ela se deu conta de que entramos distraídas e já vinha um carinha suspeito entrando lá na frente. E não deu nem pra esboçar qualquer reação, antes do ônibus apontar a entrada do túnel, um rapaz alto que devia ter uns vinte e poucos anos começou a recolher os pertences dos passageiros. Havia um ajudante com ele que devia ter a mesma idade que eu.
Na época, claro, já aconteciam assaltos à mão armada. Só que não era tão comum, pelo menos, dentro de ônibus, porque para o cara pegar uma arma, tinha que valer a pena e, pra assaltar em ônibus, bastava um canivete ou até nada, já que as pessoas já andavam alarmadas e entregavam tudo no primeiro pedido. A coisa era mesmo meio lacônica: "entrega as coisa aí.." e a vítima, em um rítmo mais acelerado "tá, leva, leva!..."
A cena nesse dia foi muito rápida. Quando ele veio em nossa direção, o maior deles, minha mãe que estava na janela, começou a tirar os anéis, brincos, dinheiro da bolsa (pedindo pra ficar com os documentos) e, de repente, quando o cara quis puxar a bolsa da mão dela, eu entrei em uma espécie de transe e puxei a bolsa da mão dele "mãe, não entrega não!", "que absurdo!", o cara arregalou o olho pra mim sem acreditar. Eu estava sentada no corredor e comecei a dizer impropérios pra ele que estava em pé na minha frente "você não tem vergonha? minha mãe está desempregada!! olha o que você está fazendo, tirando dinheiro de trabalhador! porque você não arruma um emprego? um marmanjo desses!!"... bom, me lembro que foi algo assim (dêem o desconto poque eu era uma pirralha ainda). Sei que ficou ele catatônico de um lado e minha mãe desesperada do outro chorando e falando junto comigo "pelo amor de Deus minha filha, não faz isso, deixa ele levar a bolsa!..." Sempre que me lembro disso, morro de pena da minha mãe porque imagino que deve ter sido um dos maiores sustos da vida dela. E quando ele saiu do estado catatônico quis puxar meu relógio, aí que quase levantei e dei nele: "meu relógio você não leva não!! minha mãe me deu não sei com que dinheiro porque ela tá sem emprego, tá?"... ai, ai, adolescentes... O cara teve que cair fora porque o ônibus chegava perto do tal Posto da PM depois do túnel e desceu sem levar a bolsa da mamãe nem meu relógio, e claro, me xingando até a última geração e dizendo que "era pra eu esperar que ele ia me pegar". Eu ainda tive a idéia genial de dizer com o bracinho pra cima: "pode vir, pode vir!!" (acho que eu tava possuída pelo espírito de um chefe de morro, sei lá).
Bom, porque lembrei disso? Porque acabo de assistir no Bom Dia Brasil uma sequência de vídeos liberados pela PM com os "novos métodos" dos assaltantes do Rio. Simplesmente entram, nas lojas, ônibus, casas e atiram à queima-roupa, sem que a pessoa esboce qualquer reação. Apenas olham, dentre as pessoas presentes, como numa roleta-russa e escolhem uma pra executar, enquanto recolhem o objeto do assalto. Lógico que acho terrível o que eu fiz quando era mais nova, NINGUÉM DEVE REAGIR À UM ASSALTO, JAMAIS. Mas, vendo as cenas agora, me lembrei daquele dia e me passou um arrepio pela espinha. A cena do cobrador sendo baleado é especialmente chocante, cruel. Eu também poderia ter morrido aquele dia e não estar aqui, dezessete anos depois, participando desse mundo. Nem sei se o "outro mundo" é mais bacana, só sei que a gente faz uma força danada pra continuar por aqui o máximo possível desde que nascemos. E acho que o que mais choca, é que eles parecem não dar a menor importância para a vida, é como uma "coisa", entram, atiram e vão embora, com a mesma expressão com que pegariam algo na prateleira de casa. Curioso é que hoje acordei super cedo, fiz caminhada, tava tão feliz e de repente essas cenas me tiraram o astral.
Eu, com meu idealismo inveterado, moro em Brasília com saudade eterna do Rio, e tenho esse sonho de voltar e, lá sim, fazer algo de concreto pela cidade. Ser candidata a algum cargo eletivo, tentar cavar politicamente um espaço no executivo, sei lá. Não me conformo que minha cidade tenha se tornado isso. Não me conformo que não seja feito um esforço real, inclusive do Governo Federal, para pensar um conjunto de políticas públicas que solucionem de vez esses problemas. Sei que mesmo que começasse hoje, ainda precisariam muitos anos para surgirem resultados. Mas não consigo acreditar que o Rio esteja tão abandonado, tão entregue à própria sorte. Quando eu chego no Galeão, enquanto me dirijo pro Centro, vejo tanto lixo, tantas invasões que não existiam... o inchaço urbano, a violência, tudo no Rio hoje é superlativo, tanto quanto sua beleza natural que, felizmente, continua a mesma. E eu fico aqui, com essa vontade de mudar tudo isso, de estar lá pra fazer algo concretamente, mas não sei como nem o quê. Quem sabe um dia...
Por causa disso, dessa espécie de "tradição", os passageiros que já conheciam os meliantes que ganhavam a vida (como todo trabalhador, batendo ponto) na mesma linha, se preparavam deixando objetos de valor o mais escondido possível e, velho macete, deixando uns trocadinhos à vista. Tirava a carteira da bolsa e colocava no bolso de trás da calça, colocava o relógio na cueca, cada um tinha uma estratégia. Eu me lembro que, adolescente, costumava esconder meu rico dinheirinho dentro da meia, na lateral do tênis. E até que funcionava. Nunca me roubaram.
Um dia, distraídas que estávamos as três com inúmeros problemas que estávamos enfrentando na época, pegamos o famigerado 171 sem prestar atenção nessas regrinhas básicas de prevenção. Ocorre que eu tinha acabado de fazer os tais 15 anos e minha mãe passava por um aperto dos grandes e estava especialmente emocionada no período por não ter podido me dar um baile de aniversário. Ela sabe que eu não dava a menor bola pra isso, até porque eu já era meio subversiva e "esse negócio de baile de 15 anos era muito brega". Só que se ela tivesse condições de fazer, eu tinha topado, tamanha a importância que ela dava pra coisa. Mas não rolou. Meu presente então de 15 anos foi um relógio espetacular, moderníssimo, cheio de funções, meio esportivo, que eu andava querendo muito. E foi com esse pequeno "tesouro" que entrei no 171.
Assim que sentamos, quase que instantâneamente, minha mãe deu um suspirinho assim tipo: "ai, esqueci... ixi, acho que lá vem um assaltante". Ou seja, mal ela se deu conta de que entramos distraídas e já vinha um carinha suspeito entrando lá na frente. E não deu nem pra esboçar qualquer reação, antes do ônibus apontar a entrada do túnel, um rapaz alto que devia ter uns vinte e poucos anos começou a recolher os pertences dos passageiros. Havia um ajudante com ele que devia ter a mesma idade que eu.
Na época, claro, já aconteciam assaltos à mão armada. Só que não era tão comum, pelo menos, dentro de ônibus, porque para o cara pegar uma arma, tinha que valer a pena e, pra assaltar em ônibus, bastava um canivete ou até nada, já que as pessoas já andavam alarmadas e entregavam tudo no primeiro pedido. A coisa era mesmo meio lacônica: "entrega as coisa aí.." e a vítima, em um rítmo mais acelerado "tá, leva, leva!..."
A cena nesse dia foi muito rápida. Quando ele veio em nossa direção, o maior deles, minha mãe que estava na janela, começou a tirar os anéis, brincos, dinheiro da bolsa (pedindo pra ficar com os documentos) e, de repente, quando o cara quis puxar a bolsa da mão dela, eu entrei em uma espécie de transe e puxei a bolsa da mão dele "mãe, não entrega não!", "que absurdo!", o cara arregalou o olho pra mim sem acreditar. Eu estava sentada no corredor e comecei a dizer impropérios pra ele que estava em pé na minha frente "você não tem vergonha? minha mãe está desempregada!! olha o que você está fazendo, tirando dinheiro de trabalhador! porque você não arruma um emprego? um marmanjo desses!!"... bom, me lembro que foi algo assim (dêem o desconto poque eu era uma pirralha ainda). Sei que ficou ele catatônico de um lado e minha mãe desesperada do outro chorando e falando junto comigo "pelo amor de Deus minha filha, não faz isso, deixa ele levar a bolsa!..." Sempre que me lembro disso, morro de pena da minha mãe porque imagino que deve ter sido um dos maiores sustos da vida dela. E quando ele saiu do estado catatônico quis puxar meu relógio, aí que quase levantei e dei nele: "meu relógio você não leva não!! minha mãe me deu não sei com que dinheiro porque ela tá sem emprego, tá?"... ai, ai, adolescentes... O cara teve que cair fora porque o ônibus chegava perto do tal Posto da PM depois do túnel e desceu sem levar a bolsa da mamãe nem meu relógio, e claro, me xingando até a última geração e dizendo que "era pra eu esperar que ele ia me pegar". Eu ainda tive a idéia genial de dizer com o bracinho pra cima: "pode vir, pode vir!!" (acho que eu tava possuída pelo espírito de um chefe de morro, sei lá).
Bom, porque lembrei disso? Porque acabo de assistir no Bom Dia Brasil uma sequência de vídeos liberados pela PM com os "novos métodos" dos assaltantes do Rio. Simplesmente entram, nas lojas, ônibus, casas e atiram à queima-roupa, sem que a pessoa esboce qualquer reação. Apenas olham, dentre as pessoas presentes, como numa roleta-russa e escolhem uma pra executar, enquanto recolhem o objeto do assalto. Lógico que acho terrível o que eu fiz quando era mais nova, NINGUÉM DEVE REAGIR À UM ASSALTO, JAMAIS. Mas, vendo as cenas agora, me lembrei daquele dia e me passou um arrepio pela espinha. A cena do cobrador sendo baleado é especialmente chocante, cruel. Eu também poderia ter morrido aquele dia e não estar aqui, dezessete anos depois, participando desse mundo. Nem sei se o "outro mundo" é mais bacana, só sei que a gente faz uma força danada pra continuar por aqui o máximo possível desde que nascemos. E acho que o que mais choca, é que eles parecem não dar a menor importância para a vida, é como uma "coisa", entram, atiram e vão embora, com a mesma expressão com que pegariam algo na prateleira de casa. Curioso é que hoje acordei super cedo, fiz caminhada, tava tão feliz e de repente essas cenas me tiraram o astral.
Eu, com meu idealismo inveterado, moro em Brasília com saudade eterna do Rio, e tenho esse sonho de voltar e, lá sim, fazer algo de concreto pela cidade. Ser candidata a algum cargo eletivo, tentar cavar politicamente um espaço no executivo, sei lá. Não me conformo que minha cidade tenha se tornado isso. Não me conformo que não seja feito um esforço real, inclusive do Governo Federal, para pensar um conjunto de políticas públicas que solucionem de vez esses problemas. Sei que mesmo que começasse hoje, ainda precisariam muitos anos para surgirem resultados. Mas não consigo acreditar que o Rio esteja tão abandonado, tão entregue à própria sorte. Quando eu chego no Galeão, enquanto me dirijo pro Centro, vejo tanto lixo, tantas invasões que não existiam... o inchaço urbano, a violência, tudo no Rio hoje é superlativo, tanto quanto sua beleza natural que, felizmente, continua a mesma. E eu fico aqui, com essa vontade de mudar tudo isso, de estar lá pra fazer algo concretamente, mas não sei como nem o quê. Quem sabe um dia...
3 comentários:
Bom... nem sei como encarar esse seu texto. Vim de Brasília e estou aqui no Rio, em parte motivada pelas suas expectativas de voltar, suas palavras animadoras com relação a essa cidade linda, de pessoas alegres e receptivas.
Encontrei realmente pessoas alegres e receptivas, encontrei uma cidade linda, mas vejo também uma situação que me intriga: parece que todos estão conformados com essa relação de violência. A impressão que eu tenho é que todo mundo sabe que "pode acontecer comigo", mas que isso já faz parte do cotidiano. Posso estar em uma loja, em um posto, posso estar na praia e levar um tiro, mas isso faz parte do cotidiano. E se isso acontecer, a família terá uns minutos na tv pra reclamar, depois tudo volta ao normal (que você descreveu no seu texto). E ninguém perde a boa, as pessoas continuam indo aos bares, à praia, praticando seus esportes...
Eu fico olhando, às vezes, incrédula, aqui da Zona Sul, onde tudo é lindo. Jú, é uma situação surreal. Voto em você!
Juliana, adorei seu blog! Ótimos textos. Eu passei minha primeira infância no Rio, numa época em que as crianças brincavam na rua, até tarde da noite, e a gente podia fazer piquenique na Floresta da Tijuca. Dá para imaginar isso? Quando volto lá, fico tristíssimo. É uma cidade acuada, derrotada, uma sombra do passado. Nem isso, acho. Parabéns pelos textos.
bjs
Sandrinha, venha passar uns dias aqui comigo que sua saudade de Brasília passa rapidinho. O Rio, com tudo isso, ainda é bem melhor pra se viver, na minha modesta e um tanto parcial (ou passional) opinião. ;)
E, quanto ao Leandro, puxa. Fiquei surpresa com seu comentário aqui. Seria uma honra até se vc tivesse dito que odiou, rsrss
Dizer que admiro seu trabalho é lugar-comum, vc deve ouvir isso todo dia. Mas, de fato, pra quem ainda é "foca", alguém como vc, se contrapondo ao PIG (como diz o P.H.A.), faz toda a diferença. Obrigada e, parabéns digo eu! :)
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